O
calor insuportável, o acordar antes do despertador, a noite feita de um sono solto,
intermitente, o sol já inflamado, o céu vazio de nuvens, de pássaros, o vidro
da janela morno, quase quente, os pés descalços pelo chão do quarto, pelo
mosaico da casa-de-banho, o seu rosto no espelho, os olhos lembram berlindes.
Oferece-se
um sorriso, o sorriso matinal possível, breve e azul, o cabelo despenteado
lembra-lhe sempre as mesmas palavras da mãe, passa um pente
por esse cabelo.
Precisa
de água como um peixe precisa de água, desesperadamente.
O
banho da manhã incapaz de arrefecer o corpo, de levar pelo ralo, o calor dos
lençóis colado ao calor do corpo.
De
olhos fechados, tenta esquecer a noite debaixo do chuveiro, afogar o cansaço.
Esquece
o presente e em consequência chega tarde ao trabalho.
Não
se esquece da garrafa de água, o calor obriga-a a circular pela cidade sempre com
uma garrafa de água, como se a garrafa de água uma garrafa de oxigénio, como se
o seu corpo dentro de um fato de mergulho.
A
viagem para o trabalho uma epopeia.
Epopeia
nenhuma, nem furos nos pneus, nem falhas nos travões, igual, igual o caminho,
talvez mais rápida.
Na
rádio ouve notícias de cidades a norte submersas em água por causa de chuvas
diluvianas. O mundo em desequilíbrio perfeito.
Com
dificuldade arruma as mãos no volante, os olhos na estrada.
As
ruas quase vazias. Os semáforos numa sincronia rubra a obrigar os carros a
parar.
Procura
e encontra um espaço para estacionar sob a sombra de uma árvore.
Um
jacarandá, uma sombra azul e parca.
O
asfalto sem a habitual dureza a prender-lhe os saltos dos sapatos, os passos,
quase a vontade.
Custa-lhe
caminhar. No corpo um peso para lá do peso do corpo. Abraça-se, precisa
verificar, o fato de linho, leve, não de borracha.
Custa-lhe
respirar. O ar insuportável, irrespirável.
Senta-se
à secretária, vinte minutos depois da hora em que era suposto sentar-se à
secretária.
A
secretária como se um boião de aquário.
Na
secretária um pisa-papéis em bronze em forma de peixe.
A
manhã passa, sem languidez, análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes,
telefonemas, uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Depois
a tarde, as horas rubras da tarde, do calor maior, o silêncio sob a ausência de
silêncio, as palavras em voz baixa, melodias vagas de rádios, deslizar de
cadeiras, dedos sobre teclas e botões, cabeças a pensar, sem tempo para divagações,
apenas conclusões.
Do
ponto de vista das lâmpadas presas ao tecto lembram os membros de uma orquestra
a afinar os instrumentos, a azáfama da tarde, formigas no lufa-lufa do
carreiro, ninguém em sentido contrário, a cidade um formigueiro, indiferente ao
papa-formigas.
A
tarde, passa como a manhã, sentada à secretária.
Sentou-se
pontualmente à secretária.
As
horas do dia indistinguíveis.
No
escritório uma temperatura de frigorífico garantida por um aparelho de ar
condicionado com dez anos de garantia.
A
tarde passa entre análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes,
telefonemas, mais uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Até
que uma assinatura no fim de uma página, a faz reparar na data, transforma o
dia, de abstracto a concreto, um dia de Julho.
Uma
tarde de Julho.
Julho
quase no fim. Mês de pêssegos e alperces.
E fecha
os olhos, cinco segundos, o tempo de um respirar, uma tarde inteira dentro de
cinco segundos, imagina-se na casa dos avós, o corredor sem fim, um labirinto em
linha recta, dezoito metros de corredor onde tudo podia acontecer, ela a pedalar
um triciclo pelo corredor, a alegria dos pés fora do chão, os riscos paralelos de
três rodas no soalho.
E
no corredor um armário, O armário do corredor,
quatro portas, quatro chaves de ferro forjado, a pega em forma de coração, um
gigante, como se um mostrengo a
atormentar o tormentoso Cabo.
Um
armário como se um castelo fechado a quatro chaves, na torre de vigia, num sono
vigilante, o gato da casa, a prestar vassalagem unicamente a si próprio,
desinteressado do trânsito do corredor.
Demorou
a conquistar o armário.
Demorou
quatro dias a abrir as quatro portas.
Dentro
do armário encontrou roupas da avó, o vestido de casamento, dois vestidos de
festa, vestidos de noite, escuros como a noite, talvez para que os corpos se
confundam com a noite, vestidos decotados nas costas, polvilhados a
lantejoulas, um brilho falso de estrelas.
Não
consegue imaginar a avó de lantejoulas.
A
avó sempre de avental, branco, alvo, imaculado, se um ramo de rosas brancas e
um véu, lembraria uma noiva feliz no cume de um bolo de amêndoa e ovos.
A
avó de avental à hora do chá, sempre chá preto com dois gomos de limão,
acompanhado com uma cigarrilha que fumava numa elegância plácida.
A
avó dizia It’s tea time e
com pontualidade britânica preparava o chá.
Nunca
percebeu se a avó falava a língua de Virgínia Woolf e
de Mrs. Dalloway, ou se
sabia apenas frases feitas, palavras soltas.
Há
coisas que nunca teve coragem de perguntar.
Lembra-se,
sempre que a avó a repreendia, o que acontecia com uma frequência mais do que
suficiente e que a insatisfazia bastante, que começava os reproches não pelo
seu nome próprio, em riste e completo, Sara Luísa, como sempre faziam os pais, mas
com o prefixo young lady, que
em pequena a reduzia à sua condição de ignorante.
Depois
cresceu, ficou maior do que a avó, também começou a fumar, as mesmas
cigarrilhas amargas, que quem sai aos seus não é de Genebra.
Lembra-se
de um tempo, ridículo e breve, em que se sentiu uma big woman,
em que pensou que o tamanho era medida suficiente para descurar as
consequências das suas acções e omissões.
Depois
cresceu mais, os outros dizem que cresceu, dizem que ficou comedida nos gestos
e nas palavras.
Não
nos pensamentos.
Nos
pensamentos não permite que a incomodem.
Em
consequência mente. Mente sem pudor sempre que é preciso. Protege-se.
Empenha-se
em cultivar pensamentos esdrúxulos, difíceis de medrar, adubados a palavras de
poetas assassinados, regados a água de chuva, gosta de andar à chuva, mesmo em
dias de Inverno, a água canalizada de chuveiro, que mais não pode fazer quando
não chove, a copos de whiskey,
que em simultâneo a preservam de constipações e lhe desafinam o fígado.
Dentro
do armário lençóis de linho, cobertores de lã e um cheiro a naftalina misturado
com alfazema, sabão azul e sol de Verão, um cheiro, também somos feitos de
cheiros, que desde então procura, sem nunca encontrar, sempre que abre a porta
de um qualquer armário.
Dentro
do armário o seu corpo.
Dentro
do armário um barulho de búzios.
Dentro
do armário uma gaivota e uma cegonha, o ninho da cegonha, a torre da igreja
onde a cegonha fez o ninho, a igreja, os sinos a tocar, uma procissão, uma
banda e um maestro com pinta de pirata disfarçado de almirante.
Dentro
do armário um piano de cauda, dois pinguins, um tigre, uma girafa azul, um
índio e dois cowboys, dois
pares de patins, uma princesa, sete anões, um lobo mau, três peixes-voadores,
um bando de andorinhas, um espantalho, um balão de ar, uma baleia, uma fada
madrinha, um submarino, uma costureira perita, um polícia sinaleiro, um carro
de bombeiros, um pião, uma amiga imaginária com um vestido vermelho igual ao
seu, a quem contava todos segredos, que não gostava de sopa, agora gosta, de
dormir sesta, que sabia escrever o seu nome com todas as letras, contar até 38,
que já perdeu quatro dentes, quase uma mão cheia de dentes. Cuidado que morde!
Dentro
do armário corridas em patins, as duas de mãos dadas, impossível cair, magoar
os joelhos, partir o nariz.
Dentro
do armário podiam apanhar um avião para Paris.
Viste
a Sara?
Onde
é que está a Sara?
Escondia-se
do mundo.
Escondia-se
pelo gosto simples de se esconder, de desaparecer.
Um
dia abriram uma porta, abriram todas as portas, uma a uma à vez.
O
seu corpo sem respirar dentro do armário, o seu corpo a girar como a chave
girava na fechadura da porta. O seu coração no peito entre o tamanho de um
botão e de uma baleia.
Dentro
do armário não está!
Divertia-se
com a preocupação das vozes, dos passos em volta à sua procura.
Mas
onde é que se enfiou a Sara?
No
buraco de uma agulha!
Sara!
Sara!
E
não sabe dizer quantas vezes deu por si, em casa de estranhos, uma vez num
museu, um castelo mobilado a preceito, a enfiar sorrateiramente o nariz porta
dentro de armários com mesmo um aspecto suspeito, mas vestidos de noiva, nem
lençóis de linho, nem cobertores de lã.
O
vigilante com o dedo indicador a tocar-lhe no ombro, uma insistência de
campainha de prédio de dezoito andares, um labirinto em linha recta onde tudo
podia acontecer.
Ela
a desfazer-se num sorriso sinónimo de pedido de desculpa pelo seu comportamento
atrevido, ela de olhos no chão, nos atacadores dos sapatos, à espera de uma
repreensão que invariavelmente começaria com as palavras young lady… enquanto reprime a
vontade de o interromper com a pergunta: Desculpe, por ventura sabe onde é que
está a Sara?
Raquel Serejo Martins
My Old Home, de Ana Cristina Dias