O mundo sem som.
A sala, a cozinha, os corredores, as ruas, os mercados,
a fábrica, o café, o escritório, tudo sem som.
Sem som.
Um rumor como se um búzio encostado ao ouvido, não som.
Bocas fechadas debaixo de água, bocas abertas cheias de
água, sem som.
Um rumor de motores, de pneus no asfalto, de saltos
altos na calçada, de talheres em pratos, do tinir de vidro, de plástico, de
folhas de papel, de rodinhas de cadeiras no linóleo, as teclas de um
computador, o gato na caixa de areia, o zumbido afogado do frigorífico, o
barulho de sexo dos vizinhos, o elevador, o tiquetaque do despertador sem
ponteiros, o barulho indistinto entre choro e o riso de uma criança ou apenas o
vento sobre a linha de água.
Ela peixe, do outro lado da linha.
A ignorar o isco no fim da linha do pescador.
Há sempre um pescador.
Um gato a salivar do lado de lá do vidro.
Os seus gestos em sincronia perfeita com o cardume,
como o trânsito de Xangai, de Bombaim.
Nunca foi à China, nunca foi à Índia, sabe inutilmente
que são cidades intransitáveis.
Os seus gestos em linha no cardume.
Os pensamentos desalinhados.
Porque nunca vais saber o que estou a pensar!
O que está a pensar?
Porque haveria de ser a escolhida se nunca foi
escolhida para nada?
Se nunca a tiraram para dançar.
Dançar sozinha?
Nem pensar, que vergonha, que grande vergonha!
Não saberia onde pôr os pés, as mãos, os olhos.
E no entanto, imagina-se, sonha-se, foge do mundo, a
dançar.
Porque nunca vais saber o que estou a pensar!
Deitada na cama, os olhos no tecto, consegue ver-se de
pés descalços no tapete do quarto, às vezes de camisa de noite, às vezes de
pijama, para dançar foxtrot prefere
pijama, porque o espaço diminuto, os movimentos que embalam o corpo curtos e
leves, breves, que os sonhos exigem brevidade e, nos movimentos, evita os
móveis, magoar o corpo, fazer barulho, cair no chão. Sabe que do chão não se
passa, mas também sabe que poucas coisas magoam mais do que o chão.
Até nos sonhos é contida e cautelosa.
Fazer da queda um passo de dança?
Não percebe bem a pergunta, não quer correr o risco de
cair, nem em sonhos, porque mesmo em sonhos nenhuma mão estendida para a
levantar do chão, porque mesmo em sonhos prefere a solidão.
A solidão magoa menos.
Na solidão não há quem incomode.
Assim que, quase gosta da vida que leva.
Gosta do sofá, de veludo amarelo-torrado, do gato,
também amarelo, de quando dizem que tem um gosto muito actual quando falam do
tapete verde onde plantou o sofá. Apenas comprou o mais barato, igual ao tapete
verde que tem no quarto, um tapete quase anedota, às franjinhas verdes, como se
de relva se tratasse, como se ela, não no quarto, não na sala, no meio de uma
floresta, obviamente encantada, que nunca sonha sonhos maus.
Assim a vida, quatro paredes, como se um aquário.
E porque a vida, há sempre um pescador do outro lado da
linha.
Pescadores: os caçadores que laboram com mais afinco, porque
burilam no limite do tédio.
O tédio que tudo mata mas não mata pescadores.
Os pescadores imperturbáveis.
Os peixes perturbáveis.
Dias de tentação,
de engulho, de fraqueza, de apetite, de vontade, de curiosidade, de morder o anzol,
a maça, o gomo da tangerina, os lábios de uma pessoa, pode ser uma pessoa
estranha, pode não ser amor.
Parece fácil.
Quase apetece. Confessa que apetece.
O anzol praticamente imóvel, brilhante, hipnótico.
Porque nunca vais saber o que estou a pensar!
A que sabe um anzol?
Não sabe.
Mas há momentos,
fracções de segundos, serão momentos?, em que tem vontade, quer saber.
Raquel Serejo Martins