Meu querido José
Volto a escrever-lhe, de Paris, com o tempo
deliciosamente soberbo. Um sol olímpico grassou hoje pela cidade que viu Victor
Hugo, fugidio, e Baudelaire e Nerval, nevrálgicos, por entre os passeios dos
jardins e os candeeiros a gás das esquinas mais suspeitas, as do ópio e as da
alma!
Vim fazer férias de Portugal, desse país que tanto amo
e que tanto odeio. Mas o que é o amor sem esse pó estrelado de um ódio subtil,
ligeiro e cortante, jovem das danças para dentro?
(…)
A missiva já vai extensa e demasiado cosmopolita para
que o jovem das alturas românticas possas descansar entre páginas de loucura,
de silêncio e de solidão.
Chegou a hora de publicar aquela impublicável
impressão de Nicosia, mais uma. Sempre impressões, impressões, impressões.
Tenho receio de que aquelas páginas tenham esgotado algo cá dentro.
Efraim cortou o cabelo e pediu-me que lhe contasse
este pequeno pormenor de cabeleireiro.
Escreva-me sempre, meu querido amigo, sempre.
Um abraço deste sempre
Seu
Gonçalo Viana de
Sousa
Sonata Pathétique
Que o sol de Nicosia
continue a ser um céu onde possa repousar a alma deste cansaço que assola sem
aviso prévio, sem ameaça ou convite. Depois são aquelas noites em branco, a
folha por escrever e a alma com tanto lá dentro para ser dito. Efraim, um copo
de horizonte com gelo, e logo a seguir whisky em doses positivamente triunfais!
Assola-me este cansaço
abúlico, sem explicação ou descrição possível. Um cansaço de tédio, um cansaço
de qualquer coisa inominável, curiosamente grande e pegajosa, que não tem medo,
nunca tem medo, de se colar à pele da gente e de nos acompanhar,
incessantemente, incessantemente, incessantemente. Tenho lido poesia decadente
a mais, Efraim. Os franceses tornaram-me intolerante a certas lactoses
literárias.
Que as noites de
Nicosia sejam sempre perfumadas com este travo de um Oriente que só existe
nestas terras de realidade e de noites estreladas sobre desertos de cidades e
de areias movediças que refletem o prateado luar de um imaginário oitocentista
de escritor sentado numa escrivaninha ou escrevendo de pé. Escrevendo sobre
isto, sobre nada e sobre o Absoluto…
Move-me a alma uma
dessas vague des passions que levavam
os românticos aos promontórios da solidão e do silêncio. Sinto-me cansado e,
contudo, patético, no sentido integral da palavra, Efraim.
Esta sonata de
Beethoven há-de levar-me àquelas viagens tão lindas de maresia e de suavidade.
Tudo parece um embalo de mar e de céu e de azul. Sim, azul, um azul de todas as
cores, azul frio, quente, apaixonado.
Que foi feito dos
propósitos e dos amores de há muitos anos atrás? O piano acompanha-me na sua
ladainha profana de folhas de um Outono que tarda a chegar. Às vezes a passagem
do tempo é como um baloiço que vai e vem, mas quando o baloiço volta, no seu
rodopiar de criança com fita no cabelo, de bibe molhado e mãos sujas de lama,
crescemos. Quando o baloiço volta, não é o mesmo baloiço que volta, nem a mesma
criança, nem o mesmo olhar sobre tudo isso. E a alma torna-se grande.
Mas o calor desta
noite quente aperta e seca-me a garganta e os propósitos de cetim que tive para
noites como estas, exóticas e romanticamente orientais.
Ligo a música e escuto
a sonata patética de Beethoven. O universo estilhaça-se em mil pedações e
paisagens de naturezas distantes parecem esvanecer-se em câmara lenta.
Preciso de férias,
Efraim, de umas férias da alma e do mundo e das coisas.