O Costa não tuge,
nem muge, nem grunhe, nem ronca, nem mia, nem ladra, nem grasna, nem bale, nem
crocita, nem relincha, nem coaxa, nem arrulha, nem pia.
Apenas anui,
concorda, aceita, cala, consente.
Casado há 25 anos,
desistiu de ser ele próprio há 23.
Os dois piores
anos da sua vida.
Dois anos demorou
a ficar convencido de que ser ele mesmo era coisa com muitos defeitos.
Depois, convencido,
cansado, vencido, foi evitando ser até deixar de ser.
Desapareceu como
por magia.
Onde é que está o
Costa? – Olhos à esquerda, olhos à direita, a tentação dos olhos no tecto, como
se o Costa pudesse estar, como cientista colado ao tecto a fazer companhia ao
candeeiro, ombros encolhidos, lábios franzidos e ninguém sabia.
Que o mesmo é
dizer ninguém o via (queria ver ou procurava, sobretudo rigor).
- Sim, querida!
- Claro, querida!
- É para já, querida!
- Como queiras,
querida!
Ouvia-se o Costa
ou só o Costa se ouvia, como que a desfolhar um malmequer, coxo, desdentado, defeituoso,
e mais não se ouvia.
Assim, dia após
dia, demorou dois anos, tantos dias, o Costa desapareceu, sem qualquer magia e
exactamente como ela, a querida, explicou desde o princípio, como se não mais tivesse
feito, a querida, do que dar estrito cumprimento aos procedimentos de um manual
de instruções, o Costa um microondas, exaustor, um forno.
A querida explicou.
Não pode dizer que
não explicou.
Explicou: - Tu não
tens querer, tu só me queres a mim.
Enquanto ele sem
prestar qualquer atenção à explicação, mau aluno, mau resultado, lhe dava mais
um beijo.
Houve um tempo em
que não via, nem ouvia, apenas queria, a querida, de bem-querer.
25 anos depois.
Não era preciso
esperar 25 anos.
Esperou 25 anos.
25 anos depois
percebe, conclui, admite, que ela estava carregada de razão, como em anos de
fartura as macieiras, os galhos sobre estacas, sujeitos ao insustentável peso
dos frutos.
Foi ela quem lhe
fez três filhos, os dois rapazes mais velhos e finalmente a desejada menina,
respectivamente o nome do avô materno, do avô paterno e Sofia porque o
encontrou bonito e para incomodar uma prima que foi mãe em sincronia.
Foi ela quem
decidiu tudo o resto, conclui sem vontade de explicar o que é tudo o resto.
O resto é o
trabalho, a cidade, o bairro, a casa, as flores do jardim, camomilas cujo
cheiro abafado não suporta, o sufoca, e que para mais lhe arreliam a sinusite,
o tapete da entrada, um tapete bem-falante que calorosamente diz BEM-VINDO em Times
New Roman Bold.
Já deu consigo a
falar com o tapete.
Já mandou várias
vezes o tapete fazer companhia ao Ramalho, e nos seus pensamentos a palavra RAMALHO também em Times New Roman Bold, o vão consolo de responder na mesma moeda, a tristeza
amarga de não conseguir insultar o tapete com todas as letras de uma outra
palavra.
Depois,
cabisbaixo, vitória do tapete, entra em casa.
Não se sente
bem-vindo.
Inventa horas
extraordinárias no escritório.
Guarda romances
gordos e russos nas gaveta da secretária.
É sempre o último
a sair.
É posto fora do local
trabalho.
O segurança a
cumprir o protocolo, a circular pelas instalações vazias, quase vazias, a
avisar que vão apagar a luz.
Começou a fumar.
O segurança fuma.
Fuma dois cigarros
por dia com o segurança, para justificar a sua companhia, a sua presença fora
de horas.
Fuma um atrás do
outro. Sabe como é, a minha mulher não me deixa fumar em casa, diz que o cheiro
se entranha nos cortinados.
O segurança não
sabe como é, vive sozinho e não tem cortinados.
Não foi fácil
conquistar a simpatia do segurança.
Sabe que ainda não
conquistou a simpatia da segurança.
Depois, em casa,
come o jantar frio, porém em sossego.
Come o jantar na
companhia de lebres eternamente em fuga de inevitáveis galgos nos azulejos da
cozinha, sente-se uma lebre, uma lebre sem fuga possível, lebre guisada, açorda
de lebre, enquanto vai mastigando pensamentos fáceis de prognosticar, se fosse
caçador, a tiro de espingarda, tem uma espingarda, o avô paterno deixou-lhe uma
Beretta, tem uma
espingarda mas não tem coragem, se tivesse, rebentava com os azulejos da
cozinha, depois com os da casa de banho, depois com tudo o resto.
O resto são os
cortinados, os electrodomésticos, as mobílias, o grau de dureza do colchão onde
dorme, as camisas nas gavetas da cómoda, os fatos no guarda-fatos, a pasta dos
dentes, o perfume, o champô, o after shave, o cão, o nome do cão e a taxativa impossibilidade de ter
um gato, a cor das gravatas, a cor das peúgas, e por que regra divina as peúgas
têm de condizer com a gravata, o uso de boxers, que saudades do aconchego de um
par de cuecas, a roupa a vestir no dia seguinte, a cada dia seguinte, o
pequeno-almoço, já não suporta papas de aveia, o jantar, o canal da TV, o seu
lugar no sofá, o lugar do cão, um cão que percebendo que os dois na mesma
condição subordinada, só lhe falta falar, como o tapete, passa o tempo a
mostrar-lhe os dentes, o cínico!
Afinal acabou por
explicar.
Precisava de
desabafar, conversar não apenas consigo ou com o segurança ao qual se impinge
todos os dias por vinte minutos e nem sequer são adeptos do mesmo clube de
futebol, beber com companhia uma cerveja no alpendre, só é pena esta noite fria
de chuva picada a vento em vez de uma noite de quente de
Verão.
Raquel Serejo Martins