Maria Manuel Viana em entrevista
“… e a alegoria consistia em que, por mais
que o protagonista tentasse atingir a perfeição, esta era-lhe sempre negada,
porque a procura (a demanda, a palavra do Pai) devia ser infinita, logo nunca
poderia ser alcançada.”
in Teoria dos
Limites, pág. 19
Raquel Serejo
Martins: A perfeição é inatingível, está-nos negada, somos imperfeitos e
incompletos? Temos de ser perfeitos?
Maria Manuel Viana: esta frase é dita
por uma personagem, Mariana, que reinterpreta, à sua maneira, uma explicação
que o pai, um escritor célebre, dá da cosmogonia de Leibniz: para o filósofo
alemão, a perfeição era Deus; para Mariana e as pessoas (família, admiradores,
leitores) o Escritor era uma espécie de deus. Não é revelado o tipo de
perfeição exigido na tal alegoria de que falava o Escritor, nem a palavra
perfeição tem o mesmo sentido no século XVII e nos dias de hoje. Não ocorreria
a ninguém, suponho, declarar como objectivo de vida a obtenção da perfeição e/ou
da completude, a não ser, eventualmente, em campos específicos: a música, a
pintura, a literatura. Mas falamos de dimensões diferentes: a primeira, a de
Leibniz, é uma abstracção, a segunda uma construção.
“A questão dos nomes sempre fora central na
vida delas, pensa, não só os da família como todos os outros, classificavam as
pessoas assim, os que eram dos nossos e os com nomes esquisitos, o mundo
dividia-se entre os nomes-como-deve-ser e os ditos com desprezo, como se a
própria palavra metesse nojo,…”
in Teoria dos
Limites, pág. 24
RSM: O filósofo
espanhol José Ortega y Gasset, em Meditaciones del
Quijote, escreveu Yo soy yo y mi circunstancia, y si no
la salvo a ella no me salvo yo. O nosso nome é a nossa condição?
Será que nos conseguimos reinventar? Ou não passamos de pseudónimos de nós
mesmos?
MMV: Quando Ortega y Gasset diz “eu sou
eu e a minha circunstância”, fá-lo indicando que ninguém é um indivíduo
isolado, independente do que à sua volta se passa. No fundo, é uma soma:
eu+circunstância. Se, por hipótese, alguém conseguisse viver em duas épocas
distintas, distintos seriam também o comportamento e a atitude. Se um de nós
tivesse sido judeu ou alemão nazi ou pró durante a guerra, ou bósnio, sérvio ou
croata durante a guerra dos Balcãs, independentemente de nos chamarmos à mesma
Raquel ou Maria Manuel, teríamos sido pessoas diferentes.
Agora, aqui,
neste caso específico da família da Teoria dos limites, os nomes são
importantes porque identificam quem pertence a uma casta, a uma classe social
favorecida, à aristocracia ou à alta burguesia: aí, as relações tendem a ser
endémicas e a manutenção dos privilégios passa por se defenderem uns aos
outros, em circuito fechado, rejeitando tudo o que vem de fora, porque se trata
da sobrevivência enquanto clã, casta, classe.
“…dizia, a beleza é um verniz, estala, o
importante não se vê, o mais profundo, o telúrico, que era uma das palavras de
que ele mais gostava,…”
in Teoria dos
Limites, pág. 31
RSM: Maria
Manuel, a beleza é um verniz?
MMV: Não. A beleza, enquanto abstracção,
não sei bem o que seja, depende de factores tão diferentes como a crença numa
religião, (por exemplo, na Idade Média, a beleza é essencialmente uma criação
divina e Deus é a beleza inefável que se manifesta no mundo sensível) ou a
subjectividade (para Kant, traduz-se num juízo que exprime um sentimento de
prazer). O que há é manifestações do belo: uma partita de Bach, um verso de
Shakespeare, de Camões, de Célan, a carnation lily lily rose do John Singer Sargent,
o binómio de Newton e a Vénus de Milo, Veneza, o mar da Costa Brava, a Maria
Bethânia a cantar Pessoa, o In the mood for love do Wong Kar-wai, O Blade
Runner do Ridley Scott, a voz da Emmanuelle Riva ou do Jeremy Irons, etc etc.
Mais uma vez, a
frase “a beleza é um verniz” só se compreende cabalmente ao sabermos que é
enunciada por um militante comunista que tenta desvalorizar a namorada, Sofia,
uma modelo lindíssima; ele rejeita tudo o que tem a ver com ela, a família, o
dinheiro e critica-a por “se vender” em passagens de modelo. Tentei, obviamente,
ser irónica, remetendo para o ideal de mulher comunista: operária ou camponesa,
dessexualizada, irmã de armas e combate dos camaradas-homens.
RSM: Quais as
palavras de que mais gosta?
MMV: Ah, tão difícil, a pergunta! Há
palavras fascinantes e palavras horríveis. Sou muito sensível ao som de algumas
palavras: blusa, por exemplo, odeio. Gosto muito de absoluto, profundo,
memória, silêncio, subitamente, sim, não, talvez, ana, rasura. Detesto vogais
abertas, evito sempre que posso. Por mim, falava e escrevia sempre com sons
fechados.
“Não sabe se é dessa Sofia que tem saudades
ou desse tempo, claro. Ninguém sabe nunca.”
in Teoria dos
Limites, pág. 32
RSM: Tem
saudades de outro tempo, de si? É dada a nostalgias?
MMV: Não, não sou. Ou não sou demasiado.
Penso muito pouco no passado, em termos pessoais. Posso sentir saudades mas são
efémeras e têm a ver com momentos específicos em que fui profundamente feliz: o
começo de uma paixão, uma vitória política, a primeira palavra dos meus filhos,
uma tarde numa esplanada com amigos a beber Martini.
“Não é dada a nostalgias, a infância é um
atropelo de memórias com regras e deveres, uma espera para ter lugar à mesa dos
crescidos, para lhe ser permitido sair com os amigos do irmão e da prima, para
poder falar sem ser para responder a perguntas de circunstância, para caminhar
sem ter de pôr um livro na cabeça a ver se não cai ou um debaixo de cada braço
para saber se já sabe comer correctamente,…”
in Teoria dos
Limites, pág. 39
RSM: A infância
é o tempo da espera ou o tempo felicidade feito das coisas simples?
MMV: Tenho verificado, ao longo do
tempo, que as pessoas tendem a mitificar a infância: não é raro ouvir alguém
dizer que teve uma infância muito feliz. Exceptuando os casos de abusos (e
conheço muitos, demasiados), há a ideia de um tempo passado que foi bom, em que
éramos amados incondicionalmente. Não sou dada a saudosismos, como já disse, e,
se quiser situar a altura da minha vida em que fui mais feliz não escolho a
infância nem a adolescência. Aprendi a ser feliz já adulta.
“Pergunta-lhe porque escolheu para título
Teoria dos limites, uma vez que teoria de limites é uma expressão de d’Alembert
e não de Leibniz…”
in Teoria dos
Limites, pág. 81
RSM: De certa
forma repito a pergunta, porque é que escolheu o título Teoria do Limites?
MMV: Não há nenhum mistério nem nenhuma
sabedoria da minha parte. Foi ao ler um Magazine Littéraire dedicado a Leibniz,
antes mesmo de pensar escrever o livro a partir das ideias e da sua concepção
do mundo. Mas foi um acaso, um acaso feliz: nunca fui boa aluna a Filosofia e,
em princípio, era improvável que me detivesse a ler o dossier consagrado a
Leibniz, de quem sabia muito pouco, excepto a aversão que causara em Voltaire
(este último, sim, estudei-o). Folheei o dossier, mais ou menos distraída,
detendo-me apenas nas caixas e nos sublinhados e, aí, li a expressão Teoria dos
limites, que achei lindíssima. Voltei ao princípio da revista e li tudo,
cuidadosamente: foi o início de uma pesquisa e de um estudo que me
mergulhariam, durante três anos, no universo de Leibniz. Se alguém me tivesse
dito, há uns anos, que eu iria ler Leibniz, ter-me-ia rido, por ser
absolutamente improvável.
“…palavras que lhe pareciam de súbito
demasiado banais, a perderem a força com que as pensara, palavras todas só com
valor de uso, feias, utilitárias, instrumentais?”
in Teoria dos
Limites, pág. 82
RSM: Só temos as
palavras? O que nos resta quando as palavras não mais do que banais?
MMV: No princípio era o verbo, digo eu
que sou ateia. No entanto, e essa é uma das teses do livro, a língua universal,
mecanismo fundamental para a compreensão de todos os povos e, por isso,
instrumento decisivo para a paz, seria composta por letras, notas de música,
símbolos algébricos, símbolos químicos, gráficos, ideogramas, desenhos, figuras,
cores, sons, cheiros… No fim do século XIX, um médico judeu inventou uma língua
franca, o esperanto; depois, durante o nazismo e o estalinismo, os
esperantistas foram perseguidos e, muitos deles, exterminados. Cresci na
convicção de que o esperanto poderia ser uma via para o entendimento entre
todos e um caminho para a paz. Quis fazer uma espécie de homenagem a essa
tentativa de harmonia entre os povos.
“Porque a literatura, sabe?, é exactamente o
oposto deste neopopulismo anti-intelectual que defende uma escrita linear para
chegar ao grande público, esquecendo a herança de vinte e oito séculos e
recusando-se a perceber que a literatura só persiste porque reescreve,
revolucionariamente, não só o mundo em que vivemos como tudo o que já antes foi
escrito.”
in Teoria dos
Limites, pág. 86
RSM: Esta uma
definição proposta pelo escritor, personagem principal neste livro. Como
escritora também concorda com esta definição?
MMV: Penso que o neopopulismo está a
tomar conta de tudo, desde a política às artes. O combate a tudo o que é
intelectual insere-se no pragmatismo vigente. Não se pode escrever sem ter lido
muito, muitíssimo, tal como não se pode governar esquecendo a História. Ninguém
tem inspirações divinas, não há iluminados e, se os há, são perigosos.
Irritam-me muito os escritores que afirmam não ser preciso ler Proust, Tolstoi,
os clássicos, numa atitude de sobranceria que não entendo. Um escritor é, antes
de mais, um leitor. Não gosto de atitudes que apagam a História, seja ela da
literatura, da economia, da política, da arte, das civilizações. Essa espécie
de virgindade e de inocência primitiva parecem-me uma construção não só falsa
como presumida.
RSM: Qual a sua
personagem preferida e porquê?
MMV: Não gosto de todas as personagens
ou, pelo menos, não gosto igualmente de todas. Tem sido curioso ouvir as
pessoas escolherem a personagem x ou y como a sua preferida; os homens, por
exemplo, dizem ser a Mariana e a Paula e penso que nesta escolha, entre duas
mulheres tão diferentes, se perpetua a velha oposição entre a mulher anjo e a
mulher fatal, uma espécie de arquétipos do inconsciente masculino. As mulheres
mais velhas preferem a avó, as mais novas oscilam entre a ana B. e a Mariana.
Noutro dia, alguém me dizia que a Mariana e a MªJoão eram uma espécie de
duplos, e dei-lhe alguma razão, embora não tivesse pensado nisso na altura.
Confesso que tenho debilidade pelo João Caetano mas, provavelmente, é por ser
homem e me ter sido muito complicado entrar nesse misteriosíssimo universo
masculino.
RSM: Quais os
seus limites?
MMV: Os meus limites: coarctar a
liberdade do outro, ser injusta, não ser solidária, recusar participar em
actividades cívicas ou políticas a favor do bem comum. O meu lema é tentar
fazer com que as pessoas sejam um bocadinho mais felizes.
RSM: Terminado o
livro, o trabalho de revisão é penoso e moroso ou, pelo contrário, é um
trabalho fácil e de convivência pacífica?
MMV: Escrevo muito lentamente, sou
obcecada pela verosimilhança e a verdade histórica, por isso não reescrevo
quase nada, porque levo muito tempo a construir as situações, as personagens,
as frases. Quando acabo, peço ajuda a três amigas muito próximas e cúmplices, a
Inês Pedrosa, a Julieta Monginho, a Patrícia Reis que, generosamente, revêem e
propõem alterações ou correcções. Também dou o manuscrito a ler ao meu filho
mais novo, ao meu ex-marido e a dois ou três amigos, mas aí não é a ideia de
revisão que me move e sim a da apreciação, a de ouvir as observações que fazem
e que poderão levar a alguma alteração no caso de consideram que alguma coisa
não está correcta ou não é suficientemente clara. Não é, portanto, um trabalho
penoso nem moroso.
RSM: Não deixo
de lhe dar os parabéns pelo livro, salientando que gostei muito da forma como
rematou esta história ou Teoria, para terminar com a pergunta: que leituras a
encantaram por estes dias?
MMV: Em primeiríssimo lugar, Os
memoráveis, da Lídia Jorge, de que gostei imenso. Outro livro, absolutamente
admirável e que devia ser de leitura obrigatória, foi A filha do Leste, da
Clara Usón, que ganhou o Prémio da Crítica (o mais importante galardão
espanhol), que acabei há pouco de traduzir. Reli também, para a propor como
leitura comemorativa do centenário do nascimento da Duras na Casa Fernando
Pessoa, A doença da morte, que é um dos livros da minha vida; dois romances
sobre a guerra de 14, Au revoir, là haut, de Pierre Lemaitre (prémio Goncourt)
e 14, de Jean Echenoz; a biografia de Jorge Semprún que, tal como a Duras, é um
dos meus escritores favoritos; e ainda a tetralogia de Jean-Philippe Toussaint.
Agora, espero ansiosamente que o carteiro bata à porta para me entregar o
último romance de Ignacio Martínez de Pisón.
E muito obrigada em meu nome e em nome do Clube de Leitores, bem-haja!