Primeiro foi o fim do trabalho.
O princípio da reforma.
Sentia-se no princípio do fim
O Verão passou como se férias.
O mar, e não o mar, que desde a operação aos intestinos nunca mais se
despiu em público, e não derivado da cicatriz, vinte e oito pontos, mas por
perceber que o corpo lhe envelheceu, não se sentia apresentável, tinha
ultrapassado o prazo de validade no rótulo, o rótulo carcomido e amarelo.
Que velhos são os trapos!
Sim, sim. Então o seu corpo um trapo.
O mar, e não o mar, as esplanadas, e não o seu corpo, os corpos dos
outros.
Deleitava-se com os corpos à distância do seu olhar, a miopia a
obrigar a distâncias curtas.
E gostava especialmente dos vértices, de joelhos, de cotovelos, de
ombros, de narizes.
Meu Deus, quanto mais novas mais bonitas!
E recriminava-se pelos seus pensamentos, que tinham idade para ser
suas netas.
Depois recriminava o tempo por transformar os corpos em trapos.
O mar, e não o mar, as esplanadas, o sol, a aldeia, mais esplanadas, os
primos da aldeia, tremoços, finos ou imperiais, sardinhadas, procissões, à
falta de bola conversas sobre a bola, música e bailaricos que nunca dançavam.
A última vez que dançaram, a valsa no dia do casamento.
Um sufoco.
O colete, a gravata, os sapatos, ela dentro de um vestido feito de
sedas e rendas, vantagens de ter uma madrinha costureira.
Há-de levar o vestido mais bonito que a paróquia alguma
vez viu, igual ao daquela princesa inglesa, da que casou com… como é mesmo o
nome da princesa?
Sedas e rendas que o impediam de lhe encontrar as mãos, os pés, as
curvas do corpo.
O seu corpo tinha curvas.
E desde o primeiro acorde da valsa, os dois sérios, concentrados nos
pés, nas mãos, em fazer bonito, em respeitar o compasso.
Os pés descompassados, os sorrisos nos olhos, em sincronia, sorrisos
resignados com a evidente falta de acerto e um leve encolher de ombros.
Depois das vindimas, o Outono, o sossego dos primeiros dias de chuva.
O inevitável regresso ao T3 na cidade, aos dias de chuva urbana, ao
silêncio entre as paredes, apesar do barulho do vizinho do lado, um barulho
abafado de berbequim, porque perito ou apenas incontrolavelmente adicto à
bricolage.
E a cortar o silêncio, palavras, não suas, não entre os dois.
Entre os dois sorrisos parcos em sincronia e um breve encolher de
ombros.
As palavras, dentro de casa, da rádio, giravam o botão à procura de
vozes, da televisão, mais botões, dos vizinhos do andar debaixo, um casal novo
e ainda sem filhos, que regressa a casa sempre depois do sol posto, por volta
das nove, não, depois das nove, que as luzes dos candeeiros da rua já acesas, de
Inverno noite cerrada, mas com fôlego e resistência para discutir, como se ciclistas
em contra-relógio na prova de montanha, durante três horas.
Conseguem ouvir as palavras em discussão.
Podiam ter discussões com as mesmas palavras, mas olham um para o
outro e um leve encolher de ombros e sorrisos resignados com a evidente falta
de acerto.
Tem saudades da antiga vizinha do andar debaixo, a D. Lídia, que infelizmente
não se mudou, finou-se, mudou-se definitivamente.
Uma vizinha silenciosa, educada, penteada, perfumada, apenas excesso
de pó-de-arroz e os lábios pintados em desalinho, porque as mãos desalinhadas pelo
Parkinson.
Uma vizinha que perfumava o vão das escadas do prédio, em regra, com o
N.º 5 da Maison Chanel que, em rigor, não o quinto mas o primeiro perfume da casa, e assim
seu nome porque para costureira o seu número da sorte, mesmo motivo porque
também escolheu para apresentar o perfume o 5º dia do 5º mês de 1921.
Coco Chanel disse quanto ao
N.º 5 que era um perfume com cheiro de mulher, pelos vistos as mulheres têm à
flor da pele o cheiro a baunilha.
Depois, a Marilyn
Monroe veio dizer que dormia vestida com apenas
duas gotas do perfume, e o mundo quis ser uma Marilyn, sonolenta e nocturna, que de noite os gatos
podem ser pardos, e as vendas dispararam ao ponto de o N.º 5 se transformar no
n.º 1 em vendas.
Será que a D. Lídia sabia disto?
Será que a D. Lídia tinha um não sei quê de Marilyn que ele nunca
percebeu!
Faz um exercício de imaginação e consegue ver o seu sorriso perfeito e
pintado, sem rugas, os seios altivos, lascivos, cativos sob os botões da
camisa, a cintura fina.
A filhadaputice do tempo a transformar os corpos em
trapos.
Uma vizinha que sempre que fazia um bolo de laranja, O Bolo de Laranja, por saber
que o seu preferido, o convidava para um chá uma fatia de bolo, convite que
aceitava sem hesitar, apesar da sua tendência constitucional para a diabetes, depois
pensava que se lixe, e comia sempre uma segunda fatia.
Mais fininha, se não se importa!
As mãos da D. Lídia, trémulas e desalinhadas pelo Parkinson, a cortar uma
fatia de bolo igual ou maior do que a primeira.
Quase não falavam.
Este foi feito com laranjas do Algarve, para o meu
gosto melhores que as andaluzas. – Informava a
D. Lídia. – E o chá é de
cidreira, dizem que bom para a digestão.
E encolhiam os ombros em sincronia quando na rádio palavras tristes,
notícias, letras de canções, engarrafamentos, que esqueciam a cada garfada, num
consolo sacarino.
Nos dias de bolo de laranja, o cheiro a bolo acabado de sair do forno,
a citrinos, a sol, perfumava o prédio do rés-do-chão ao oitavo andar.
O prédio tem oito andares, como o da canção da Elis.
E no 4º esquerdo, onde mora, o silêncio pesado, desconfortável, como
um sofá que em má hora compraram, caro, enorme, em pele, um paquiderme, onde os
corpos ou escorregavam ou se mantinham à proa tortos e sem posição definida.
Ofereceram o sofá aos primos da aldeia, carregaram-no todos contentes
porque não sabiam o que levavam.
A felicidade também é isto, não saber o que nos espera.
O silêncio pesado!
Será que o silêncio engordou?
Ele engordou. Ela engordou.
Seria antes mais leve?
Não sabe responder.
Não estava em casa.
Queria estar em casa.
Agora está em casa.
Não se sente em casa.
A casa um boião de aquário. Dois peixes no boião.
Abriam e fechavam a boca e palavra nenhuma.
Não sabia o que dizer.
Não encontrava o que dizer.
Percebeu, demorou a perceber, que as palavras entre os dois foram
sempre corteses sem nunca serem amorosas, cordiais sem nunca serem confidenciais,
dóceis sem nunca serem íntimas.
O presente, o provável futuro, os dois sentados lado a lado no sofá, mais
modesto, mais confortável, a mesma manta xadrez sobre o reumático dos joelhos, supostamente
a fazer companhia um ao outro, e companhia nenhuma, apenas prontos para morrer
de tédio um ao lado do outro e, um sorriso síncrono e resignado, um leve
encolher de ombros.
Assim o Outono.
Assim o Inverno.
A casa um boião de aquário. Dois peixes no boião.
Abriam e fechavam a boca e palavra nenhuma.
Não sabia o que dizer.
Não encontrava palavras para dizer.
No primeiro dia de Primavera, como se o degelo, apesar de nunca nevar
na cidade, apenas chuva, uma chuva urbana que lhe fomenta o reumático e os
problemas respiratórios, que nem tudo pode ser culpa do tabaco, depois de muito
procurar encontrou palavras.
Três dias depois, ela encontrou as mesmas palavras, numa folha de
papel aos quadradinhos pendurada na porta do frigorífico.
Demorou mais de vinte minutos à procura dos óculos, que sem graça
encontrou à segunda volta no primeiro lugar onde procurou, que o mesmo é dizer,
no lugar dos óculos, na mesinha de cabeceira. Encolheu os ombros irritada,
porque fica irritada quando isto acontece, uma irritação cada vez mais
frequente, e com os óculos postos leu o que estava escrito na folha de papel
aos quadradinhos.
Nunca me senti tão perdido.
Agora que sei que não tenho tempo a perder.
Fui.
O Fui roubou-o ao neto, que assim remata e-mails, cartas e até postais de
Natal.
Deixando, no entanto, uma pergunta sem resposta.
Mas, foi para onde?
Raquel Serejo Martins