Cabeça de Vento, de ANA CRISTINA DIAS (detalhe)
A primeira vez que
lhe chamaram cabeça de vento estava na escola primária.
Talvez mesmo na
primeira classe.
Os meninos de bata
amarela.
Canários em linha,
como molas de roupa sem roupa não numa corda mas dentro de uma gaiola.
Guarda uma memória
amarela.
Os meninos
sentados, plantados nas carteiras, um campo de girassóis de olhos encandeados
por um sol negro de ardósia, duas dúzias de olhos cegos de espanto por perceber
que os estranhos desenhos eram palavras e que as palavras eram feitas de letras,
uma matrioska, parecia marosca.
P-a-t-o.
G-a-t-o.
Parecia estranho,
era estranho, porque para ela, um gato, sete vidas, quatro patas, um rabo, muitos
bigodes e dois olhos amarelos como os berlindes que guardava no bolso.
Olhava para o
enorme quadro negro e gato nenhum, nem escondido, denunciado por um rabo de
fora.
Ouvia a explicação
na voz de locutor de rádio sem música do professor e perdia-se, fugia, para lá
das enormes janelas, tão grandes que a deixavam ver a cidade inteira.
Mentira, sabe que
é feio mentir, se a cidade uma laranja, uma tangerina porque a cidade pequena, via
apenas meia tangerina, o que já é muito ver para uma janela.
E de olhos na
janela, para lá do vidro, perdia-se à procura do gato, procurava ao sol à
soleira das portas, à porta da peixaria, camuflado entre os cortinados de uma
janela, entre dois vasos com sardinheiras, a atravessar a estrada dentro ou
fora da passadeira, pelas árvores, pelos muros, pelos telhados.
Chamavam-lhe
cabeça-de-vento e diziam que fazia muitas avarias.
Ou tinha muitas
ideias e nem todas corriam bem.
Convém ser boa a
correr.
Não era o seu
caso. Corria, tropeçava, caía, como se uma sequência com lógica.
Os joelhos pele de
crocodilo, crosta sobre a crosta da primeira ferida.
E a correr, entre
a lebre a tartaruga, ela um peixe.
Dentro de água ninguém
a apanha, ninguém lhe ganha.
Ia ao fundo como
se fosse à lua.
Para mais na
cidade um rio, nos seus Verões um rio.
Quando ia ao fundo
deixava todos de olhos pendentes e respiração suspensa, como a sua debaixo de
água, até ao seu regresso, hesitantes quanto a mergulhar também, no limite do
susto, até que emergia ofegante, sorridente, e sempre com uma pedra na mão,
prova oval e concreta da sua audácia.
Tinha no quarto um
frasco de vidro onde em vez de bolachas ou biscoitos guardava pedras do fundo
do rio. A avó sabia que tantas as pedras como as vezes que ficou com o coração
nas mãos por saber como o rio é matreiro com os invasores.
Porém ela um
peixe.
E apesar das
pedras, a avó nunca a chamou cabeça-de-vento, talvez soubesse que ela um peixe,
inconsciência, audácia, guelras e barbatanas.
De olhos tristes com
um sorriso perdoava-lhe todas as asneiras.
Mesmo quando os
berlindes lhe fugiram do bolso, como se tivessem pezinhos.
Fugiram, avó! – Um
eufemismo.
Fugiram-me do
bolso e sem querer fizeram cair o professor no corredor da escola.
Mau humor
fracturado em dois sítios, fato de fazenda de três peças e braço esquerdo
engessado ao peito, passou a ser conhecido entre os girassóis como o pau-de-giz.
Tem tempo para a
tristeza a menina. – Ouvia-se a avó dizer como se de uma ordem se tratasse, ao
tempo, à tristeza e a todos os que queriam corrigir a menina.
Pelo que em casa
da avó um mundo diferente, o tempo sem sobressaltos e o seu cocuruto em
sossego.
Um mundo pequeno.
A avó não tinha muito. Uma casa. Um gato. Uma figueira e na figueira quando
figos pássaros.
A avó não tinha
muito mas tinha muitas histórias para contar.
Conta outra vez a
da menina que tinha um tapete voador.
E a avó contava, a
mesma história, sempre de forma diferente, como se não atinasse com a história,
pelo que sempre uma surpresa, um espanto.
Era uma vez um tapete
que de tanto voar, voou mais do que avião, tanto como foguetão, chegou à lua,
fez da menina astronauta.
A avó nunca andou
de avião.
A avó só conhece
os aviões de os ver passar no céu lá longe, pequenos como pardais, lá longe, na
lentidão dos caracóis deixando um rabo de fumo.
A avó nunca viu
foguetões, nem mesmo na televisão, que serve para as notícias e não mais, sabe
sem saber bem o que são, imagina-os como foguetes gigantes, velozes e
barulhentos como os que lançam na festa de Nossa Senhora da Assunção, grandes
como camionetas, capazes de levar gente dentro, capazes de aterrar na lua, pelo
menos quando gorda e cheia, apesar de tudo somado lhe parecer fraca
brincadeira, porque fraco passeio para piqueniques.
Porém a menina
gosta de ir à lua.
Foi a primeira
astronauta da turma.
Pelo que a avó, se
o avô a dormir a sesta, ia ao bengaleiro buscar a boina e o chapéu de levar à
missa ao Domingo, dois capacetes, enfiava a boina na cabeça da neta até às
orelhas, que assim devidamente protegida, 10-8-7-4 começa de imediato a
contagem decrescente, contava ao contrário sem ainda bem saber contar, estado
de euforia uma única vez interrompido, não para abortar a missão lunar, nem
impedir a humanidade de dar mais um salto, mas por se lembrar, em respeito pelo
original, que lhes faltava uma bandeira, a avó sabia que era imprescindível
levar uma bandeira.
Temos de fazer uma
bandeira. – disse antes de descolar o foguetão.
Tenho uma velha
almofada solteira, cortamos uma galho seco à figueira.
O que é uma
bandeira? – Pergunta a menina ansiosa perante a nova palavra e a novidade.
Uma bandeira! Como
te posso explicar, é como uma fotografia. Estás a ver a fotografia do avô que
guardo na caixa de costura, tem o bigode do teu avô, os óculos do teu avô, o
chapéu do teu avô, o sorriso do teu avô, os seus vinte anos, o bolo de
chocolate de que tanto gostava, o dia em que me pediu em casamento, o dia em
que nasceu a tua mãe, o dia em que tu nasceste, é um quadradinho de papel que tem
dentro todas as histórias de um país e os sonhos também.
Então a minha
bandeira tem de ter uma bicicleta! O pai disse que se eu me portasse bem me
oferecia uma bicicleta no meu dia de anos.
Cabeça de Vento, de ANA CRISTINA DIAS, Pintura em Livro