quinta-feira, 11 de outubro de 2012

IsaBEL


Isabel, come as couves-de-Bruxelas.

Isabel sentou-se no sofá, um sofá excessivo para o seu corpo diminuto.
Encostada às costas do sofá, não chegava com os pés ao chão.
Lembrou-se de si no tempo quando tantas vezes, quase todas as vezes, não chegava com os pés ao chão.
Uma menina quase sempre triste.

Triste porquê?
Sim, que eu não deixava que lhe faltasse nada.

E, mais uma vez, a mesma frase.
Isabel, come as couves-de-Bruxelas.
Como se a única memória.
Uma memória e um sabor amargo.
Isabel, come as couves-de-Bruxelas.
A voz da mãe aguda e enfática, sumida.
Os lábios pintados, o colar de pérolas pequeninas sobre o decote.
As pérolas falsas.
Como se alguém perdesse o tempo a reparar nas pérolas.
Todos os olhos no bico do seu decote, gulosos e em suspiros velados.
O bico de seu decote, qualidade ou propriedade que aos dezanove anos lhe valeu o título de viscondessa, ultrapassando pretendentes que tocavam piano e falavam francês.
A família do visconde em polvorosa.
A família do visconde: Deu-nos um desgosto.
Depois.
O exílio.
O seu nascimento.
A reconciliação.
A família do visconde: Seja tudo pela menina.
A mãe a entrar na casa pela primeira vez.
A mãe com menos instrução que o mordono, a governanta, o chauffeur.
O futuro visconde, com carinho, a dizer baixinho ao seu ouvido, chauffer é o funcionário que conduz o veículo automóvel.
Funcionário?
Empregado.
A sua mãe a mudar, o volume da voz, o tamanho dos gestos, as palavras na boca, as roupas do corpo, o penteado, os sapatos.
Os sapatos duros e brilhantes de verniz. Tudo brilhante na sua nova vida.
Já não se lembra de andar descalça.
Passou a infância descalça. Foi feliz descalça.
Já não se lembra de ter sido feliz.
Nunca permitiu que a filha andasse descalça, que à menina não lhe faltam sapatos.
A mãe a adquirir a resistência de concha. Sedimentada, calcária, dura.
Todas as atenções concentradas na filha, a sua criação, a tábua de salvação.
Isabel obrigada à perfeição, mais perfeita que o bico do seu decote, sob o mesmo colar de pérolas falsas, a única coisa do seu mundo original, pérolas falsas.
Como se alguém perdesse tempo a reparar nas pérolas.
Pérolas que agora ninguém supunha falsas, pérolas que antes apenas podiam ser falsas.
Quando fez quinze anos a mãe deu-lhe um colar de pérolas verdadeiras.
Queria uma bicicleta.
Obrigada a andar de colar de pérolas e sapatos de verniz, não era feliz.
O avô deu-lhe uma bicicleta.
A discussão. Mais uma. Nesta casa ninguém respeita o que eu digo.
A bicicleta a ganhar pó e ferrugem, a envelhecer.
A mãe a envelhecer mais depressa do que a bicicleta.

Isabel come as couves-de-Bruxelas.
E Isabel já não comia as couves-de-Bruxelas.
Nesta casa ninguém respeita o que eu digo.

A mãe morreu ontem.

Hoje o funeral.

Isabel no sofá, sozinha na sala, os pés descalços, os pés sem os sapatos de verniz.
Habituou-se aos sapatos de verniz.
Habituamo-nos a tudo.
Batem à porta.
O velho mordomo, cúmplice na arte de fazer desaparecer couves-de-Bruxelas do seu prato, cúmplice, porque foi com ele que, às escondidas, aprendeu a andar de bicicleta.
Menina, fica para jantar?

E ela já não menina.

Fico sim.
Apetece-lhe algum prato em especial?
Sim, qualquer coisa com couves-de-Bruxelas.

Raquel Serejo Martins


Sem comentários:

Enviar um comentário