sábado, 24 de março de 2012

in Minuete do senhor de meia-idade

A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão. Vai a gente muito devagar da sala à cozinha, com aquela loiça toda de dias, de semanas, de meses em equilíbrio uns sobre os outros, a tilintarem e a tremerem, mais dúzias de garfos e facas escorregando lá de cima, no meio dos restos de comida e dos restos de infância, de espinhas de peixe de pequenas mentiras e de folhas de alface de domingos felizes, e nisto, sabe-se lá porquê, os anos entortam-se, uma saudade escorrega, a minha mãe, muito nova, escapa-se-me das mãos, e atrás da minha mãe os anos da tropa, o liceu, a esposa do farmacêutico a chamar-me do primeiro andar e eu com medo, vai a gente com aquela loiça toda, cada vez mais precária, mais vacilante, mais oblíqua

a morte da minha avó por exemplo, o dentista que se enganou no molar

e a meio do corredor ou então já na cozinha, já com a bancada à vista, já

pensamos nós

a salvo, os dias, as semanas, os meses deslizam uns a seguir aos outros, devagar primeiro, depressa depois, tudo junto por fim, e eis a vida em cacos no linóleo, um único pires completo e o resto bocadinhos, o único pires completo é alguém que não distingo a dizer-me adeus de uma varanda ou assim, um parapeito com sardinheiras, julgo que o mar ao longe, o único pires completo sou eu de bicicleta a voltar para casa



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