I.
naquela tarde ela disse que me amava. ela sentou na
poltrona, acendeu um cigarro, lia um livro que não sei e foi por cima das
páginas que eu ignorava que ela me olhou para piscar e dizer. ela disse assim,
descomprometida das consequências: ‘eu te amo, tanto’. depois fez uma pausa,
enxugou uma lágrima. tive pena de mim. aquilo doeu como uma abelha fustigando
o centro do peito. fui incapaz de responder. meus olhos passeavam por ela
como os olhos do menino que fita a folha de papel de seda no ar, um
pássaro. depois daquilo, balançando o pé no ar com a perna cruzada, ela
terminou a leitura e se fez ausência. o cigarro terminou, a luz do sol tingiu os
restos da fumaça de lilás.
II.
choveu o dia seguinte, o outro também. o papel de seda
encharcou entre as nuvens do meu querer. envergaram os meus ombros.
sufoquei a ilusão com um duro golpe. ela ligou, eu não respondi. ela
escreveu, eu não li. ela chamou por mim e eu deixei que ela se fosse, aos
poucos, sumindo, desintegrando, desfazendo aquele mal. aos poucos ela
desistiria de insistir e eu teria que desistir na desistência dela. por aqueles
dias corri ver meu time. convidei alguém para minha cama sofrendo não aspirar
naquele novo corpo o mesmo perfume que desenhava minhas utopias. engoli a
saudade a palo seco. a palo seco foi a expressão que ela usou quando disse que
me diria aquilo que disse numa tarde, sentada na poltrona que resta vazia entre
as brumas do meu silêncio.
- Penélope Martins -
* na ponte de afetos que aproxima leitores daqui do Brasil com os de lá ou daí de Portugal... com rubrica 'é do borogodó!', algo pra lá de batucada.
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