domingo, 28 de fevereiro de 2016

Flores de Funeral

Sabes, ter alguém ao lado não é isto, não pode ser isto, esta sensação de abandono e desamparo, este viver no fio da navalha, este viver sem rede, como se eu fosse um equilibrista de circo, eu, que não tenho vocação de nómada e tenho pavor de alturas.

O fim-de-semana foi mau e hoje, Sexta-feira, tudo continua mau.

Sempre ouvi dizer que a ocasião faz o ladrão, detesto frases feitas mas talvez seja verdade, porque desde o fim-de-semana todos os dias me foram roubados.

Dias que tinham outro destino, que contaminados, ficaram em convalescença, nesta doença de amor amargo que tudo tolhe, tudo encolhe.

Porque sem fôlego para a ternura não consigo dar-te um abraço.

Porque como um cão, uma cadela, o género importa, cheia de raiva, tenho vontade de morder e magoar.

De morder-te, tirar pedaço, esquecer o berço, a educação e cuspir para o chão, sem engolir.

Porque estou cansada de engolir, de comer e calar, de tanto ladrar.

Porque não tenho nada de novo para te dizer, tudo velho e gasto como dizem dos trapos.

Porque as queixas as mesmas de sempre e eu esta mulher, esta mulherzinha, de quem não gosto, queixosa e a fazer queixinhas.

O fim-de-semana foi mau e hoje, Sexta-feira, tudo continua mau.

O meu corpo como um barco no estaleiro.

Como um carro na garagem do mecânico.

Talvez tenha conserto mas é preciso substituir demasiadas peças, mandar vir de fora, porque dentro tudo podre, corroído, entupido.

É preciso afinar sorrisos, mudar limpa pára-brisas, substituir travões, mudar o óleo queimado, o sangue a latir nas veias, nas têmporas, substituir más memórias por boas memórias, desentupir artérias, como se fossem pneus encher de ar os pulmões.

Más metáforas mecânicas à parte, repito-me, o fim-de-semana foi mau e hoje, Sexta-feira, tudo continua mau.

A dor é repetitiva, aferra-se, sabe ser cão, ou melhor carraça.

A mágoa impediu o amor e não nos tocamos há muitos dias.

Os dias passam e a solidão um poço onde me afundo, onde me afogo. A morte mais silenciosa, sabias? Claro que sabias, sabes tudo menos o que eu sinto, mesmo se eu te digo como me sinto.

Não é suposto o amor ser isto sair do trabalho e não querer ir para casa, querer ir para lugar nenhum, até que, sem ter para onde ir, porque a quantidade de suicídios que acontecem em quartos de hotel assusta-me e porque no fundo ninguém quer saber dos nossos problemas amorosos, problemas que contados lembram pechisbeque, sem ter para onde ir volto para casa, onde pelo menos o gato e janto ao teu lado. E enquanto jantamos de tabuleiro no sofá vemos um episódio gravado de uma série e dormimos juntos e parece que fazemos tudo juntos sem nada fazermos juntos, enfim, vicissitudes de viver num T1.

E apetece-me dizer-te coisas muito más.

Eu já te disse coisas muito más.

Coisas que me fizeram muito mal, aos ouvidos, ao estômago, ao fígado, aos pulmões.

Aprendi que as palavras que não dizemos pesam toneladas e que as palavras que dizemos também pesam toneladas, tanto faz, de qualquer forma sinto que carrego o peso do mundo, 
um mundo mirrado que pesa como chumbo.

Tanto faz, porque eu disse todas as palavras, sou um cão dos que ladra, queria-nos transparentes, deixei tantos avisos, tantas vezes mostrei o lugar da ferida, da dor, sempre o mesmo lugar no lado esquerdo do peito.

Eu acho que me fiz entender, mas não adiantou de nada, porque os erros os mesmos, as mágoas as mesmas, a dor a cavar mais fundo, mais escura, mais de sete palmos, mais do que suficiente para enfiar um cadáver, um caixão, pelo que as tuas flores não são flores de festa, são flores de funeral. 

Eu acho que me fiz entender, e por isso a frustração maior, a dor maior, tudo maior perante a inutilidade das palavras, porque não eram palavras, era eu.

E a ironia de tudo é que quem nos vê, quem nos conhece, quem julga que nos conhece, pensa que somos um casal feliz.

As histórias das famílias estão cheias de ilusões de óptica.

Não sei se juntos somos uma família.

Dizem que Molière dizia: Quando não nos fazemos entender, falamos sempre bem…!

Eu acho que me fiz entender, tu dizias que percebias. Talvez seja de facto difícil duas pessoas falaram a mesma língua, como é difícil aprender uma língua estrangeira. Demorei dois anos a desistir do russo.

Queria-nos transparentes mas parece que ficámos invisíveis.

Ou apenas risíveis, pois é, se um dia conseguirmos rir do que nos está a acontecer é porque somos outra vez amigos.

Raquel Serejo Martins



1 comentário:

  1. Assim como tudo que é bom sem comentários, agora põe uma bunda de fio dental, aí chove comentário, acordamos isso é Brasil, parabéns ótimo flores de funeral. Por tempos eu não entendia essa sigla sem comentários agora entendo, quando vc não estiver comentário, é porque é bom :)

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