domingo, 31 de janeiro de 2016

«Todos os tempos verbais» em Coimbra

foto: Teresa Ferrão Pessanha

Chego aqui, à casa que nunca deixei de chamar casa. Alguém me dizia, admirada, que nós continuávamos a referir a Boa-Bay-Ela como nossa casa, ainda que não a habitássemos. E é assim mesmo – uma vez escolhidos para aqui vir, permanecemos.

A casa é um corpo carregado de memórias, paredes surdas que assistiram ao nascer e crescer de tanta gente, testemunho de vidas e de cruzamento de tantas histórias individuais, transformadas numa gigante bolha de felicidade.

E voltar é isso mesmo – regressar a um sítio de grande alegria sem verdadeiramente nunca ter de lá saído.

A nossa casa assistiu ao meu caminho. Não fui eu que me dirigi aqui e entrei. Fui sendo pescado, num processo lento de conquista. E não me deixei enganar, aqui encontrei o meu tecto.

Escrever estava-me destinado, sem eu nunca ter percebido que isso acontecia. A poesia nasceu, num processo tão natural como o da entrada na República.

Recordo os anos que vivi neste espaço, com os meus irmãos, e das cartas que lhes escrevi. Já naquele tempo me preocupava com o mundo global que hoje nos sufoca em tantos aspectos. E percebia, de uma forma simples e clara, que sítios como a nossa casa são sempre um ponto perdido num imenso oceano.

Afinal o amor é a solução final e eu deixei que ele acontecesse aqui. Pratiquei também a solidariedade, a amizade absolutamente descomprometida, nunca imposta, nada convencionada. O valor do abraço multipliquei-o por mil, num aperto e felicidade que sabia existir em cada um de nós.

E ainda assim o é.

E será, será para sempre. Num sempre que nunca acaba.

foto: Ricardo Botelho

O meu livro não fala desta casa, talvez porque não escolhi escrevê-lo. As coisas foram acontecendo, poema a poema, sem aparente organização ou objectivo.

Mas a poesia guarda os pensamentos que escorri enquanto cá vivi. Ainda hoje tenho bem presentes os rostos da casa, os barulhos, o encontro imediato com os velhos que cá viveram. E isso reflecte-se na minha vida, nas memórias felizes, guardadas a sete chaves no meu pensamento.

É verdadeiramente inspirador estar aqui convosco. É um motivo de enorme alegria ter vários amigos que fizeram comigo este caminho. Estar rodeado de vós é sentir-me em casa. Não podia escolher melhor sala para celebrar o meu livro.

Agradeço à geração que fundou a República. Agradeço a todos os que continuaram a contar esta história bela, uma casa que é um poema em si. Não tenho dúvida que todos nós pautamos a vida por aquilo que aprendemos cá. Carrego a certeza que isso será sempre inspirador, em tudo o que façamos fora deste círculo.

Aqui me fiz melhor pessoa, aqui consegui enquadrar toda a significância da palavra saudade. E é isso que mais sinto, uma enorme vontade de voltar àqueles dias despretensiosos, onde as coisas simples se transformavam em pequenos objectivos (como arrumar tudo para depois receber, num abraço, mais e mais convidados).

O meu livro fala dessas coisas que aprendi cá. Ao longo destas páginas percorro viagens até à infância, recordo momentos felizes, dedico poemas a pessoas queridas. Falo também do amor e da ausência dele. Tento enquadrar questões lançadas ao ar, sem saber responder a nada do que exponho. Debato-me com aquilo que não controlo e não domino. Exponho, num acto de coragem, sentimentos guardados bem fundo na minha consciência.

«Todos os tempos verbais» é um título que conjuga isso tudo – um querer invocar um passado, um interrogar presente e uma incerteza futura.

Convido-vos a fazerem esta viagem comigo, terei todo o prazer de debater cada uma das linhas que escrevi.

Hoje é um dia feliz. A casa mais bonita que habitei está preparada para a festa. Aguarda serena e calma a chegada de mais gente, numa roda sem fim, até ao acordar de um novo dia. A Boa-Bay-Ela é eterna, disso não tenho dúvidas. E há-de sempre inspirar o poema, a escrita, o pensamento e opinião. A liberdade é o bem mais precioso que há, e aqui celebra-se, todos os dias, isso mesmo.


Muito obrigado a todos. 

foto: Ricardo Nunes

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