sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Meu querido José

Escrevo-lhe de Lisboa, à hora do sol matinal de inverno que aquece estas benditas e luminosas ruas. Lisboa é sempre, para mim, a esta hora, uma cidade mítica e exótica, irmã de Nicosia e de outros países-navio.
Voltei dessas supercivilizadas gálias carregado de novas noções de arte, de novas filosofias, de queijos e de vinhos. (O seu Chambertin à la Eça não foi esquecido, jovem dos papéis viandantes).
Esta longa jornada em Paris e em Borgonha fez-me ver novos horizontes e chegar a conclusões tão difusas quanto silenciosas. Vi a maldade humana em cada canto, escondida entre gestos de indiferença ou na falta destes. Avistei-a na multidão cambaleante, anónima e líquida que vagueia pelas estações, pelas paragens, pelos passeios e pela cidade de uma forma tão autómata quanto gritante. Mas também vi a bondade, jovem das crenças de cetim e de papel. A bondade surgiu numa situação inesperada. Estava vagueando por uma pequena ruela onde artesãos, livreiros e artistas vendem as suas peças e se predispõem a conversar com os curiosos transeuntes.
Em certo momento, avisto uma pequena réplica dos camponeses a comerem batatas ou os comedores de batatas, do ruivo mais misterioso da história das coisas belas. Aquela imagem fixou-se-me de uma forma inebriante e Stendhalesca que me tornei num drama estático (peço-lhe desculpa por esta pessoana apropriação, mas foi a impressão que tive).
Naquele quadro vi toda a bondade do mundo na forma como aquela família, pobre, suja e trabalhadora, comia uma sopa aguada, fruto de um trabalho injusto. Mas aquela família permanecia unida, independentemente do que estivesse para acontecer. Na sua pobreza miserável partilham o pouco que têm e partilham-no com amor, com uma entrega que chega a arrepiar. Talvez o divino.
Todavia, acabei por vislumbrar tanta maldade naquele quadro… Interessante como o mal acaba por ser o móbil de todas estas criaturas que até pensam, escrevem, pintam e constroem!
O mal está naquela pobreza húmida, onde se sente o caruncho dos dias penosos, de uma pequenita ranhosa aos tombos pelos cantos da casa poeirenta, enquanto a matrafona enfiada nos seus cobertores gastos, rotos e sujos se dedica a rezas de lábios semicerrados entre a devoção e a loucura. É a filha mais velha que tenta confortar a avó e, principalmente, a mãe, a pobre mãe que de todos trata esquecendo-se de si, a pobre mãe que remenda a roupa dos seus com aquilo que encontra, a desgraçada da mãe que deixa de comer para que a filhinha tenha mais uma tigela de água e batata aquecida num lume apagado pelos dias de vento e de frio. É o pai que vem da fábrica exausto e com uma tosse que vem das cavernas mais negras e profundas.
Vejo, portanto, tanta maldade naquele quadro do jovem ruivo que o acho belo, positivamente belo!
Vagueei um pouco mais por entre as tendas dos artistas e de seguida zarpei para outras paragens. Quando me sento a uma mesa de restaurante noto que a minha carteira havia desaparecido do bolso do sobretudo. Não a encontrei em lado algum. De imediato voltei para trás, refazendo o caminho até à pequena rua por onde cirandei. Quando passo ao pé do quadro dos comedores de batatas uma criança suja e rota vem ter comigo e entrega-me a carteira, dizendo-me que o «senhor estava a olhar tão fixamente para o quadro que nem viu que tinha deixado cair a carteira». A menina entregou-ma intacta, nem uma nota desaparecera. Nada.
Num “gesto largo, liberal e moscovita” dei tudo o que tinha na carteira àquela menina que em tudo era semelhante à do quadro. E lá continuei a minha jornada, menos imbecil, talvez mais bondoso mas com um sorriso nos lábios por finalmente ter percebido o porquê do seu querido engenheiro naval dizer que não era romancista russo aplicado nem parvo.
No fim, a bondade venceu, é certo, mas foi a minha malícia orgulhosa que prevaleceu perante a poesia.
Bom, despeço-me apressadamente, pois Efraim aguarda a minha presença para uma longa caminhada pela romântica Baviera portuguesa.
Um abraço deste sempre

Muito seu


Gonçalo Viana de Sousa

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