
Andei a tentar organizar as ideias para dizer alguma coisa
neste dia importante. A vida põe-nos neste corre-corre e parece que só
conseguimos parar, por breves momentos, quando estamos de véspera. Somos confrontados
com mil e um desafios. A cada dia que passa fica mais complicado quebrar o
ritmo.
Não sei como conseguem os poetas sobreviver nos tempos de
hoje. Digo-o, porque é um desafio constante arranjar espaços de silêncio,
recolhas solitárias, locais onde não os descubram.
Talvez a poesia procure dar significado aos silêncios da
alma. O poema seria então o derradeiro acto de coragem, daqueles que gritam bem
alto os sentimentos, dentro de um túnel de vento. Um escape às rotinas, que não
necessariamente um projecto sincero. Uma montagem de legos, talvez, onde as
palavras são pequenas peças que vamos compondo até ter uma figura.
Estou num processo de saída de casa dos meus pais. É a
terceira vez que parto, contínuo sem saber se será para sempre. Para mim é
certo que nunca devemos excluir ou esquecer os locais onde mora a felicidade. O
facto mais simples e básico do amor é precisamente reconhecer que o núcleo
principal que o compõe não nasce connosco, mas começa bem antes, com quem nos
gera.
Eu não resolvi de um dia para o outro começar a escrever.
Vivi e cresci com a doce loucura de um pai coleccionador de livros. Ainda hoje
acredito que os alicerces daquela casa não são os tijolos que a compõem, mas os
milhares de livros que lá habitam.
A vontade (que só quem vive percebe) de estar rodeado de
livros, de saber que uma casa sem estantes é despida de alma e sentimento;
explica muita da paixão que tenho por ler. Mas não só. Na família há alguns casos
de pessoas que se meteram pela escrita. E isso parece ser transversal a todas
as últimas gerações. Explicado, quem sabe, pelo simples acto espontâneo de
querer dizer alguma coisa ao mundo.
Talvez seja este o meu ponto de partida na escrita – uma
vida que me foi dada já com a existência dos objectos, das paixões dos
coleccionadores, dos que precisam de mostrar aos outros aquilo que lhes vai na
estratosfera da consciência.
Ter sido livreiro também ajudou a escrever, ler grandes
livros potenciou a aventura e descoberta. Nos últimos anos, estive sempre à
beira de passar esta barreira que nos separa do desconhecido ao exposto.
Escrever é um acto de coragem, repito. E eu tive que me sentir preparado para a
ter.
Antes da poesia, houve a crónica. Antes da crónica, houve um
blog. Antes de um blog, já eu deixara várias pistas de que um dia me ia atirar
de parapente. Mas tinha que perceber o que estava do outro lado do espelho, nem
que fosse pelo desafio de me situar.
Tenho uma relação inconstante com aquilo que escrevo.
Consigo perceber a arquitectura, o ritmo, a procura geométrica das palavras, a
sua colocação pensada. Sei todos os segredos por detrás dos hífens,
reticências, pausas e parêntesis, repetições. Só eu sei que parte é a minha
vida, que percentagem tem as minhas memórias, o que são respostas que não
tenho, o que é absolutamente fingido e não é sequer meu… Porque eu não sou o eu
poético, o ser poético é que vive dentro de mim e me vai usando. Como diria
Mário de Sá Carneiro, “Eu não sou eu, nem sou o outro. Sou qualquer coisa de
intermédio. Pilar da ponte de tédio, que vai de mim, para o outro.”
O poema normalmente apresenta-se a qualquer hora do dia. O
banho costuma ser um lugar onde se geram ideias. A rua (e o simples acto de
caminhar) também. Tropeçar numa frase que surge do nada, é normalmente o
princípio. E muitas vezes ela vai dar início à montagem.
De baixo para cima esquematizei muitos poemas. De uns textos
fiz alguns segundos, numa espécie de acto criativo contínuo. Há coisas que
escrevo num impulso rápido e repentino. Outras vezes não, são monstros que
crescem comigo cá dentro e que eu preciso de tempo para os expulsar.
Nunca julguei ou senti pensar que o que escrevo pudesse
dizer algo ao leitor. Esse é um dos super poderes de quem escreve, que eu só
vivi quando começaram a comentar, a citar ou a enviar mensagens acerca do que tinha
acabado de produzir e partilhar. Que boa é a sensação de alguém dizer que
determinado poema exprime, de alguma forma, o que essa pessoa gostaria de ter
dito, mas não o soube ou conseguiu dizer.
Ao mesmo tempo, é estranhíssimo ter um livro publicado.
Conto algumas vezes o episódio de estar este ano na feira do livro do Porto e,
de repente, aparecer uma pessoa que me diz: “vamos ali à banca onde está o teu
livro à venda, quero que me assines um”. Foi uma descida à realidade, o objecto
existe e eu sou autor. A verdade é que não me lembro disso todos os dias, por
vezes não sei bem se isto é real ou uma ficção que alguém escolheu por mim.
«Todos os tempos verbais» é, assim, aquilo que tenho
apelidado de meu livro zero. Não sei bem o que sou enquanto escritor, não sei
bem para onde me dirigir a seguir, não faço ideia de onde me situar. E isso é
mesmo bom, acreditem. Estou muito longe da fama que se faz em torno dos
escritores serem sofredores profissionais, carregarem consigo o peso das suas
obras.
Cada vez que leio este meu livro, descubro coisas novas. E há ali pensamentos e frases onde me apetece acrescentar qualquer coisa ou pedaços que me inspiram para futuros poemas.
Cada vez que leio este meu livro, descubro coisas novas. E há ali pensamentos e frases onde me apetece acrescentar qualquer coisa ou pedaços que me inspiram para futuros poemas.
Uma das outras grandes descobertas que fiz foi talvez
perceber algumas ligações entre os poemas que compõem o livro. É
extraordinário, porque a ideia nunca foi fazê-lo (o livro nasce com quase todos
os poemas escritos). Sentir um fio condutor, uma ténue continuidade entre eles,
foi talvez o que mais me surpreendeu neste processo.
Fui sendo empurrado para publicar, sempre que partilhava
mais um poema e me liam. Mas ainda hoje questiono como se deu o click?… A ideia
do objecto foi toda pensada rapidamente, sem grandes consultas. A partir do
momento em que escrevi o poema mais pessoal deste livro, com o título “Avô”, uma
voz interior fortíssima atirou-me para o sonho de publicar, podendo, ao mesmo
tempo, num acto de amor, dedicá-lo a uma figura fortíssima que me influenciou
muito.
A capa não é a figura animada popular das nossas infâncias,
como alguém disse, do Inspector Gadget. Apesar das parecenças, o trabalho
fantástico do David Pintor é, na realidade, a interpretação do poema dedicado
ao meu avô. Para quem o conheceu, fica fácil reconhecê-lo.
O David Pintor, conhecido ilustrador galego, foi a minha
primeira escolha para a capa. Conheci o David numa exposição, ali no edifício
Axa, em plenos Aliados. Mas ele apresentou-se-me sob a forma de vários quadros
de escritores ilustrados, não enquanto pessoa. Rapidamente apareceu-me na
internet e comecei de imediato a divulgar o seu trabalho. Mais tarde, tive a
sorte de o ver numa livraria infantil aqui no Porto, e foi fantástico ter um
livro assinado por ele. O David ilustra as suas dedicatórias – é esta a
extensão das suas palavras, do seu nome.
O prefácio da Ana Paula Oliveira e o posfácio da Ana Almeida
também foram dois processos rápidos. Eu queria dar espaço a duas pessoas que
sempre me impulsionaram na escrita, pelas críticas que me fizeram àquilo que
liam. Mas isso até não é o mais importante. O facto é que o amor pelos livros,
a descoberta do mundo em que habitam, o encanto pelas palavras… fez crescer uma
amizade natural e muito bem vivida. E isso bastaria apenas e só para
participarem desta aventura.
A Clara Amorim, aqui presente, foi a pessoa que mais plantou
em mim a ideia de um livro. Talvez achasse essa ideia louca quando a ouvi pela
primeira vez, cheguei a pensar que pastilhas andava ela a tomar para dizer
aquilo, e que farmácia as vendia?
Creio que a Clara também se move e viaja pelas pessoas que
lê. Ler livros é uma coisa, mas ler pessoas e livros é outra. E assim, com
grande benefício para os escritores e para a Clara, nascem obras, chovem
críticas, dão-se uns retoques, organizam-se ideias, crescem amizades improváveis,
que não teriam começado caso não vivêssemos neste mundo em rede.
Transpor o virtual para o real é também um acto de coragem,
voltámos à mesma ideia. Num planeta onde há cada vez mais actores e menos
realizadores, passar a barreira da rede para o abraço, é, em si, atirarmo-nos
sem medo para a frente. Ninguém poderia dizer isto há 30 anos atrás, mas assim
é.
A Maria José Ferrão (por quase toda a gente conhecida por
Mizeca), minha prima e amiga de outra geração (apesar de ter tanta coisa comigo
na mesmíssima idade e proporção), foi também a minha primeira escolha para
estar ao meu lado no Porto.
Sempre gostei de pessoas invulgares. E por invulgar entendo alguém
que tem palavras e olhares que a grande maioria não tem ou não pratica. A
Mizeca usa os seus olhares todos, quase como uma prece religiosa. Tem também
uma necessidade constante de alimentar a alma, para levar consigo tudo aquilo
em que acredita e dar a mão àqueles que ama. Vive no seu mundo próprio e, tal
como eu, parece não viver obcecada com aprovações. Num mundo carregado de
pessoas tóxicas e de uma certa tendência para ordenarmos os dever-ser, mesmo
nos sentimentos que convém organizar; ser invulgar também começa a ser um acto
de coragem. Felizmente para a Mizeca nunca foi preciso mudar o disco, a coragem
nem é um conceito que ela precise de agarrar com particular força, porque já
nasceu misturada entre tantas outras significâncias.
O meu livro procura dar sentidos. Ao contrário do que
vulgarmente se diz, acho que nunca chegámos a sair verdadeiramente da idade dos
porquês – não, isso não pode ser apenas uma fase da infância. E a poesia é isso:
um sentido, um caminho. Onde estou, para onde vou, o que é verdadeiro, o que é
ficção, o que é estilo e o que é palha para encher versos?
Vivo o momento mágico de estar aqui. Nunca pensei ter uma
plateia para me ouvir, nem nos meus maiores sonhos. Ter a sorte de ter aqui a família
presente a dar-me apoio, de ter amigos que fui guardando em todas as idades, de
ter pessoas que não conheço muito bem, mas que estão cá; é verdadeiramente um
acontecimento na minha história. Sinto e guardo a certeza de que hoje algo muda
em mim, num misto de alívio e de certezas para um caminho. Tudo o que vier
depois só pode ser mais e melhor.
Nós vamos fazer esta viagem juntos, com a coragem
necessária. E sem pressas, sem ligar muito a convenções. Procuremos não ceder à
banalidade dos dias, à aceitação dos actos repetitivos. Que haja espaço para
mais poesia, livros e conversas sobre eles – isso é o que vos peço.
Em breve vou sair de casa. Não sei bem o que sentir ou como
exprimir a partida em palavras. Nesta viagem que é viver, espero ter sempre a
força para que os lugares me inspirem. Ou porque tenho saudades deles ou porque
simplesmente são o meu aqui e agora, o meu presente.
Não é fácil encontrar o caminho dos sentimentos pela
escrita. Por vezes podemos ser vítimas naturais daquilo que já lemos, daquilo que
alguém já disse. Mas eu continuo a pensar que os poetas arranjarão sempre forma
de sobreviver e de trazer ao mundo um caminho alternativo.
A poesia faz todo o sentido nesta era de sentimentos
descartáveis, convencionalismos globais, rebanhos megalómanos. É uma pausa
nesta concepção de humanidade que quer à força os seus minutos de fama. É uma
solução para quebrar rotinas, ir de encontro aos caminhos mais simples, que
tantas vezes fazemos de conta não existirem, apenas e só para parecer bem.
Quem quiser, por favor pegue no meu livro. Tenho todo o
prazer em discuti-lo e revelar muitos dos seus segredos, com a
intersubjectividade de eu próprio ainda não o conhecer totalmente.
Agradeço novamente aos apresentadores que estiveram aqui comigo,
às Galerias Lumière, ao Filipe Soares, à Teresa Castro (uma amiga que trago do
meu primeiro emprego, numa livraria, e que hoje é dona da fantástica loja que
temos aqui, a AguAgu), ao Helder Magalhães e ao Daniel Gonçalves, por me terem
dado luzes sobre como montar uma edição de autor e tudo o que é preciso.
Agradeço também toda a ajuda da gráfica, a RealBase, e ainda à minha amiga Sara
Costa Leite, que abrilhantou os flyers que circularam nas redes sociais e nos
emails.
A todos, muito obrigado por terem vindo. Acreditem que estão
a celebrar um dos dias mais felizes que vivi até aqui.
*Rodrigo Ferrão, no dia da apresentação de «Todos os tempos verbais», nas Galerias Lumière
Agradecimentos: David Pintor | Ana Almeida | Ana Paula Oliveira | Helder Magalhães | Clara Amorim | Maria José Ferrão | Sara Costa Leite | Daniel Gonçalves | Teresa Castro | Filipe Soares | Galerias Lumière | RealBase
Ter feito parte desta aventura foi, para mim, um enorme prazer e um orgulho sentido. Que este seja o primeiro de muitos.
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