domingo, 11 de outubro de 2015

Tardes em naftalina

O calor insuportável, o acordar antes do despertador, a noite feita de um sono solto, intermitente, o sol já inflamado, o céu vazio de nuvens, de pássaros, o vidro da janela morno, quase quente, os pés descalços pelo chão do quarto, pelo mosaico da casa-de-banho, o seu rosto no espelho, os olhos lembram berlindes.
Oferece-se um sorriso, o sorriso matinal possível, breve e azul, o cabelo despenteado lembra-lhe sempre as mesmas palavras da mãe, passa um pente por esse cabelo.
Precisa de água como um peixe precisa de água, desesperadamente.
O banho da manhã incapaz de arrefecer o corpo, de levar pelo ralo, o calor dos lençóis colado ao calor do corpo.
De olhos fechados, tenta esquecer a noite debaixo do chuveiro, afogar o cansaço.
Esquece o presente e em consequência chega tarde ao trabalho.
Não se esquece da garrafa de água, o calor obriga-a a circular pela cidade sempre com uma garrafa de água, como se a garrafa de água uma garrafa de oxigénio, como se o seu corpo dentro de um fato de mergulho.
A viagem para o trabalho uma epopeia.
Epopeia nenhuma, nem furos nos pneus, nem falhas nos travões, igual, igual o caminho, talvez mais rápida.
Na rádio ouve notícias de cidades a norte submersas em água por causa de chuvas diluvianas. O mundo em desequilíbrio perfeito.
Com dificuldade arruma as mãos no volante, os olhos na estrada.
As ruas quase vazias. Os semáforos numa sincronia rubra a obrigar os carros a parar.
Procura e encontra um espaço para estacionar sob a sombra de uma árvore.
Um jacarandá, uma sombra azul e parca.
O asfalto sem a habitual dureza a prender-lhe os saltos dos sapatos, os passos, quase a vontade.
Custa-lhe caminhar. No corpo um peso para lá do peso do corpo. Abraça-se, precisa verificar, o fato de linho, leve, não de borracha.
Custa-lhe respirar. O ar insuportável, irrespirável.
Senta-se à secretária, vinte minutos depois da hora em que era suposto sentar-se à secretária.
A secretária como se um boião de aquário.
Na secretária um pisa-papéis em bronze em forma de peixe.
A manhã passa, sem languidez, análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes, telefonemas, uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Depois a tarde, as horas rubras da tarde, do calor maior, o silêncio sob a ausência de silêncio, as palavras em voz baixa, melodias vagas de rádios, deslizar de cadeiras, dedos sobre teclas e botões, cabeças a pensar, sem tempo para divagações, apenas conclusões.
Do ponto de vista das lâmpadas presas ao tecto lembram os membros de uma orquestra a afinar os instrumentos, a azáfama da tarde, formigas no lufa-lufa do carreiro, ninguém em sentido contrário, a cidade um formigueiro, indiferente ao papa-formigas.
A tarde, passa como a manhã, sentada à secretária.
Sentou-se pontualmente à secretária.
As horas do dia indistinguíveis.
No escritório uma temperatura de frigorífico garantida por um aparelho de ar condicionado com dez anos de garantia.
A tarde passa entre análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes, telefonemas, mais uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Até que uma assinatura no fim de uma página, a faz reparar na data, transforma o dia, de abstracto a concreto, um dia de Julho.
Uma tarde de Julho.
Julho quase no fim. Mês de pêssegos e alperces.
E fecha os olhos, cinco segundos, o tempo de um respirar, uma tarde inteira dentro de cinco segundos, imagina-se na casa dos avós, o corredor sem fim, um labirinto em linha recta, dezoito metros de corredor onde tudo podia acontecer, ela a pedalar um triciclo pelo corredor, a alegria dos pés fora do chão, os riscos paralelos de três rodas no soalho.
E no corredor um armário, O armário do corredor, quatro portas, quatro chaves de ferro forjado, a pega em forma de coração, um gigante, como se um mostrengo a atormentar o tormentoso Cabo.
Um armário como se um castelo fechado a quatro chaves, na torre de vigia, num sono vigilante, o gato da casa, a prestar vassalagem unicamente a si próprio, desinteressado do trânsito do corredor.
Demorou a conquistar o armário.
Demorou quatro dias a abrir as quatro portas.
Dentro do armário encontrou roupas da avó, o vestido de casamento, dois vestidos de festa, vestidos de noite, escuros como a noite, talvez para que os corpos se confundam com a noite, vestidos decotados nas costas, polvilhados a lantejoulas, um brilho falso de estrelas.
Não consegue imaginar a avó de lantejoulas.
A avó sempre de avental, branco, alvo, imaculado, se um ramo de rosas brancas e um véu, lembraria uma noiva feliz no cume de um bolo de amêndoa e ovos.
A avó de avental à hora do chá, sempre chá preto com dois gomos de limão, acompanhado com uma cigarrilha que fumava numa elegância plácida.
A avó dizia It’s tea time e com pontualidade britânica preparava o chá.
Nunca percebeu se a avó falava a língua de Virgínia Woolf e de Mrs. Dalloway, ou se sabia apenas frases feitas, palavras soltas.
Há coisas que nunca teve coragem de perguntar.
Lembra-se, sempre que a avó a repreendia, o que acontecia com uma frequência mais do que suficiente e que a insatisfazia bastante, que começava os reproches não pelo seu nome próprio, em riste e completo, Sara Luísa, como sempre faziam os pais, mas com o prefixo young lady, que em pequena a reduzia à sua condição de ignorante.
Depois cresceu, ficou maior do que a avó, também começou a fumar, as mesmas cigarrilhas amargas, que quem sai aos seus não é de Genebra.
Lembra-se de um tempo, ridículo e breve, em que se sentiu uma big woman, em que pensou que o tamanho era medida suficiente para descurar as consequências das suas acções e omissões.
Depois cresceu mais, os outros dizem que cresceu, dizem que ficou comedida nos gestos e nas palavras.
Não nos pensamentos.
Nos pensamentos não permite que a incomodem.
Em consequência mente. Mente sem pudor sempre que é preciso. Protege-se.
Empenha-se em cultivar pensamentos esdrúxulos, difíceis de medrar, adubados a palavras de poetas assassinados, regados a água de chuva, gosta de andar à chuva, mesmo em dias de Inverno, a água canalizada de chuveiro, que mais não pode fazer quando não chove, a copos de whiskey, que em simultâneo a preservam de constipações e lhe desafinam o fígado.
Dentro do armário lençóis de linho, cobertores de lã e um cheiro a naftalina misturado com alfazema, sabão azul e sol de Verão, um cheiro, também somos feitos de cheiros, que desde então procura, sem nunca encontrar, sempre que abre a porta de um qualquer armário.
Dentro do armário o seu corpo.
Dentro do armário um barulho de búzios.
Dentro do armário uma gaivota e uma cegonha, o ninho da cegonha, a torre da igreja onde a cegonha fez o ninho, a igreja, os sinos a tocar, uma procissão, uma banda e um maestro com pinta de pirata disfarçado de almirante.
Dentro do armário um piano de cauda, dois pinguins, um tigre, uma girafa azul, um índio e dois cowboys, dois pares de patins, uma princesa, sete anões, um lobo mau, três peixes-voadores, um bando de andorinhas, um espantalho, um balão de ar, uma baleia, uma fada madrinha, um submarino, uma costureira perita, um polícia sinaleiro, um carro de bombeiros, um pião, uma amiga imaginária com um vestido vermelho igual ao seu, a quem contava todos segredos, que não gostava de sopa, agora gosta, de dormir sesta, que sabia escrever o seu nome com todas as letras, contar até 38, que já perdeu quatro dentes, quase uma mão cheia de dentes. Cuidado que morde!
Dentro do armário corridas em patins, as duas de mãos dadas, impossível cair, magoar os joelhos, partir o nariz.
Dentro do armário podiam apanhar um avião para Paris.
Viste a Sara?
Onde é que está a Sara?
Escondia-se do mundo.
Escondia-se pelo gosto simples de se esconder, de desaparecer.
Um dia abriram uma porta, abriram todas as portas, uma a uma à vez.
O seu corpo sem respirar dentro do armário, o seu corpo a girar como a chave girava na fechadura da porta. O seu coração no peito entre o tamanho de um botão e de uma baleia.
Dentro do armário não está!
Divertia-se com a preocupação das vozes, dos passos em volta à sua procura.
Mas onde é que se enfiou a Sara?
No buraco de uma agulha!
Sara!
Sara!
E não sabe dizer quantas vezes deu por si, em casa de estranhos, uma vez num museu, um castelo mobilado a preceito, a enfiar sorrateiramente o nariz porta dentro de armários com mesmo um aspecto suspeito, mas vestidos de noiva, nem lençóis de linho, nem cobertores de lã.
O vigilante com o dedo indicador a tocar-lhe no ombro, uma insistência de campainha de prédio de dezoito andares, um labirinto em linha recta onde tudo podia acontecer.
Ela a desfazer-se num sorriso sinónimo de pedido de desculpa pelo seu comportamento atrevido, ela de olhos no chão, nos atacadores dos sapatos, à espera de uma repreensão que invariavelmente começaria com as palavras young lady… enquanto reprime a vontade de o interromper com a pergunta: Desculpe, por ventura sabe onde é que está a Sara?
 
Raquel Serejo Martins
 
My Old Home, de Ana Cristina Dias
(Mais trabalhos desta pintora em: http://eu-e-a-pintura.blogspot.pt/.)



2 comentários:

  1. Hoje parei aqui, para te ler com calma. Que tempo tão bem gasto, que viagem tão boa, obrigada, querida Raquel!

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