quinta-feira, 20 de agosto de 2015

No tempo em que os animais falavam


Do Verão, as tardes infinitas.

O silêncio das cigarras.

Os pés descalços pelo soalho da casa.

A casa na penumbra, a sala, os quartos, o silêncio dos móveis, o barulho dos cheiros, cera, sabão, naftalina, alfazema, cidreira, tabaco, tinta, papel, pele, licores de várias cores, pêssegos, maças, flores a murchar, em regra rosas brancas, as flores preferidas da avó.

A casa uma floresta, crepuscular, e o terraço a arder apesar da sombra, mantenham as portas fechadas, ordenava a avó, não fossem as chamas atrever-se a entrar em casa.

Os meus pés descalços, inteiros sobre o soalho, em pontas aos saltos curtos pelo chão do terraço que, apesar da sombra, amarelo e apesar de amarelo, os meus pés descalços cinzentos, castanhos, pardos quase negros.

Calça os chinelos. – A avó dizia até que desistiu, se cansou, de dizer.

Pelo chão do terraço a sombra a dançar, toalha bordada a flores, flores quase secas, quase papéis perfumados, mensagens de namorados, belas e efémeras.

Pelo chão do terraço a sombra feita de buganvílias, roxa de cor.

Buganvílias em vigília.

O chão do terraço em granito.

Pedra grão. Pedra pão.

Numa terra em que tão pouco medra, porque tudo infinito.

Inverno e Verão infinitos.

Fora da sombra a pedra a arder.

Dentro da sombra a pedra em brasa e uma rede baiana.

Um tio-avô mandou embarcar a rede no porão de um avião.

Par avion, metálico pombo-correio, que aparentemente falava francês.

O avião tinha nome.

O tio-avô também tinha nome.

Só o avô sabia o nome do irmão e do avião.

Só o avô guardava memórias do irmão.

E todos os Verões, como eu, chegava uma encomenda embrulhada em papel pardo e, aos meus olhos, decorada com selos tropicais, papagaios, tucanos, onças, araras e com a encomenda uma carta de poucas linhas, poucas as palavras alinhadas.

E as palavras repetidas, como se copiadas da carta do Verão anterior, como se sempre e mesma carta.

Que esperava encontrar-nos, a carta, bem e com saúde.

Que saudades das cerejas de Junho, dos pêssegos e alperces de Julho, das uvas de Agosto, dos dióspiros de Setembro, todos frutos que não encontrava no Brasil.

Que saudades do irmão.

Que sempre e também saudades da Adosinda.

Da Adosinda que foi o seu amor de juventude, que não há amor como o primeiro.

Da Adosinda dos olhos verdes, os únicos olhos verdes da aldeia, olhos que mesmo cheios de lágrimas não o conseguiram prender, fracos anzóis, para mais num tempo em que fome era coisa que não faltava nas bocas, ou dito com poesia, porque o mar tem dias, muitos, em que verde também, olhos sem serventia como farol, porque o perderam para o mar, para outra terra.

Da Adosinda que teve tão fraco fim, mau casamento e morte de nova, sucessos, insucessos, que o avô não contou ao irmão, nem do casamento, nem do funeral, omissões com vocação para mentiras, devidamente inocentes por não mais que com o fito de preservar no irmão a vontade de regresso, que sem vontade não vamos a lado nenhum, e que faziam com que, do lado de lá do Atlântico, a Adosinda continuasse, olhos cheios de água, solteira e quase menina.

Depois, tanto tempo depois, cinquenta anos depois na certeza que não voltaria a ver o irmão, já não fazia sentido matar a Adosinda.

Assim a história de uma rede da Baía, de duas redes da Baía, inéditas nos terraços de uma aldeia em Trás-os-Montes, porque à Adosinda, no mesmo Verão chegou encomenda igual.

Do Verão, as tardes infinitas e embaladas numa rede.

Se a rede um búzio, se encostasse ao ouvido o búzio, os meus pensamentos, o meu sono seco, a minha respiração, o barulho de ondas, o som do vento e do mar.

Na rede o meu corpo marinheiro embalado pelo mar.

Na rede o meu corpo de menina, um corpo que já não é meu, mais livros, revistas e um gato, que nas caravelas havia sempre um gato.

Um gato que copiava todos os meus passos e o sono da sesta.

Na casa havia oito gatos mas apenas um, como um monge copista, copiava o meu sono, imitava os meus passos.

Na casa havia oito gatos à solta e dois coloridos pintassilgos dentro de uma gaiola, pássaros que apesar de presos não se inibiam de cantar e encantar quando o calor do pino da tarde esmorecia.

Como se com hora marcada para o espectáculo, separavam-se as cortinas e os pintassilgos começavam a cantar, celebrando o alívio dos corpos e da terra, o facto de terem sobrevivido incólumes a mais uma tarde de calor de incêndio, docemente acordando a casa, como se madrugada fosse.

O meu corpo na rede a acordar também.

A desembaraçar-se do livro aberto por ler, a separar-se do gato, o gato primeiro contrariado, depois, sem ressentimentos, a esquecer as contrariedades, a espreguiçar-se no chão, copiando o meu corpo a espreguiçar-se na rede, e as ondas de volta ao mar.

A avó a desenrolar o corpo, tronco e cabeça outra vez verticais, com o dedo indicador a expulsar os óculos da ponta do nariz, as agulhas do crochet como pauzinhos chineses de novo no regaço em movimento, movimentos brancos não de arroz mas de lã, linho ou algodão.

E os gatos, espevitados, atenazados, pelo canto, apesar de fartos, em respeito pela felina natureza, corpos em sentido, olhos amarelos postos na gaiola, em turbulento desejo, em adoração, quase religião. Porque só quando cantavam, quando em homilia, em provocação, na língua que só os animais falam e entendem, os presos pássaros prendiam a atenção dos gatos.

Há quem diga que o desejo é melhor do que o prazer, como se a fome fosse melhor do que comer, e os gatos, sentados na primeira fila da plateia, uma lista de desejos como uma lista de supermercado, por favor, embrulhe-me dois passarinhos para levar, diziam dezasseis olhos, que os olhos também falam, que os olhos também comem.

Vidrados nos corpos alados para lá das grades.

Indecisos quanto a como agir.

És um gato ou és um rato?

Sem nenhum, felino suficiente apesar da leonina linhagem, se atrever a enfrentar a fúria do meu avô se por má ventura encontrasse a gaiola vazia.

Cuidados e sementes de cardo guardava o meu avô para os pintassilgos.

E a cada noite de Verão, o meu avô fumava sozinho sentado no terraço os dois últimos cigarros do dia, e não sozinho, porque a buganvília, os pintassilgos, a lua, as estrelas, o vento, o barulho dos cheiros.

O meu avô que, como uma personagem do Bellow, dizia que as palavras eram para os velhos ou para jovens de coração velho, assobiava baixinho pensamentos e os pintassilgos respondiam, conversavam animadamente numa língua que só os animais entendiam, até que os pássaros sem fôlego desistiam e um silêncio de mar, se o mar tivesse dentro grilos e cigarras, inundava tudo.

E isto era tudo que agora é nada.

Porque a casa vazia de gente, cheia de pó, do cheiro a humidade e a bafio, habitada por aranhas e traças, e no terraço, a gaiola vazia, a buganvília seca, a rede da Baía a apodrecer,

Porque tudo se pode perder até a memória.

Porque hoje o meu avô faz 113 anos dentro de mim.
 
Raquel Serejo Martins
 

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