Meu querido José
Por cá continuo eu, em Celorico, neste recanto de verdes
folhagens de vinho e broa, recanto de águas e de céu ao qual me atrevo a chamar
casa.
Como já lhe havia contado no domingo passado (…), (…) é
sempre interessante observar Efraim por entre as botoeiras das rosas, regando
os canteiros de flores e de ervas aromáticas. De mangas de camisa arregaçadas,
de galochas e calças de ganga, Efraim assemelha-se a um daqueles Jacintos que
Eça tão bem descreve por terras de Tormes. Com a dourada idade dos cinquenta e
cinco anos, Efraim, o formidável judeu rejuvenesce por entre estas alamedas de
tílias, vinhedos e castanheiros. O semita supercitadino rende-se ao silêncio
dos sulcos de terra molhada pelas águas dos tanques matutinos. Enquanto Efraim
se dedica a esta vida campestre, sólida, saudável e robusta, vou caminhando
pelos largos que me viram menino e moço. São os adros de granito cinzento que
ressoam um sino que teima a dobrar, é o pequeno passeio entre a casa do adro da
igreja; são os largos portões ante-enferrujados, negros ou verdes, que estendem
os seus braços de ramadas e de heras labirínticas que abrem caminhos a casas
caiadas de branco, de janelas abertas e de meninas que corriam com fitas no
cabelo. São as longas salas de minha casa, o piano de cauda onde minha tia
tocava algumas peças de Debussy e de Schumann enquanto o velho padre Serafim,
no seu sofá coberto de rendas, dormia beatificamente, ou rilhava uma bailarina
ou pão-de-ló com um cálice daquele vinho do Porto tratado, que vinha das terras
de meu pai, em Alijó. Ainda hoje consigo escutar as notas de uma rêverie, de um träumerei. E tantas outras memórias, jovem das aventuras de papel!
Lembra-se daquilo que lhe disse, na tarde de domingo, a propósito das
biografias de Fradique e de Veiga? Não se esqueça! As palavras consomem-nos por
dentro, tanto quanto o silêncio que a música proporciona. É a realidade, jovem
frenético, mas não hoje. Se a literatura é a arte da palavra e da voz, não é
menos verdade que também seja a arte do silêncio, do olhar e do recolhimento.
Música e Literatura são filhas do silêncio e do silêncio precisam para que
consigamos alcançar os segredos mais absolutos, mas sempre aquém do Absoluto. A
Arte trata-se de pequenos absolutos que guardam em si um Absoluto maior, o
Absoluto. Cada obra de arte, cada escultura, cada pintura, cada composição,
cada soneto, cada romance, cada edifício, cada tragédia, cada mulher é a
centelha do absoluto, do divino e do indefinido. E veja bem aonde me levaram as
portas e as salas da minha casa de Celorico: ao Indefinido, ao Absoluto!
Tudo por conta de minha tia que tocava aquela peça tão bela e
tão íntima e tão feminina de Claude Debussy. Eram cinco minutos que continham
em si todo o Universo…
Agora Efraim colhe as flores com a Zulmira, a Ti Zulmira, caseira
e zeladora dos mais belos arranjos florais que vi em toda a minha vida.
O passeio termina, querido José, e a vida, como sempre,
continua.
Agradeço a sua visita e o seu convite para jantar no próximo
domingo, ao qual não acedo por inconveniência de Efraim, que recebe seus primos
de Israel. Ficará, pois, para outro momento, esse tal anho no forno com arroz
de calda e açafrão.
Quando o seu Barreirinhos terminar não hesite em pedir mais
umas quantas caixas deste verde néctar, tão fresco e jovial. Em Celorico é o
verde branco, a água fresca, a broa e a vida!
Um abraço do rosado Efraim, outro do
Seu
Gonçalo V. de Sousa.
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