quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Meu querido José


Por cá continuo eu, em Celorico, neste recanto de verdes folhagens de vinho e broa, recanto de águas e de céu ao qual me atrevo a chamar casa.
Como já lhe havia contado no domingo passado (…), (…) é sempre interessante observar Efraim por entre as botoeiras das rosas, regando os canteiros de flores e de ervas aromáticas. De mangas de camisa arregaçadas, de galochas e calças de ganga, Efraim assemelha-se a um daqueles Jacintos que Eça tão bem descreve por terras de Tormes. Com a dourada idade dos cinquenta e cinco anos, Efraim, o formidável judeu rejuvenesce por entre estas alamedas de tílias, vinhedos e castanheiros. O semita supercitadino rende-se ao silêncio dos sulcos de terra molhada pelas águas dos tanques matutinos. Enquanto Efraim se dedica a esta vida campestre, sólida, saudável e robusta, vou caminhando pelos largos que me viram menino e moço. São os adros de granito cinzento que ressoam um sino que teima a dobrar, é o pequeno passeio entre a casa do adro da igreja; são os largos portões ante-enferrujados, negros ou verdes, que estendem os seus braços de ramadas e de heras labirínticas que abrem caminhos a casas caiadas de branco, de janelas abertas e de meninas que corriam com fitas no cabelo. São as longas salas de minha casa, o piano de cauda onde minha tia tocava algumas peças de Debussy e de Schumann enquanto o velho padre Serafim, no seu sofá coberto de rendas, dormia beatificamente, ou rilhava uma bailarina ou pão-de-ló com um cálice daquele vinho do Porto tratado, que vinha das terras de meu pai, em Alijó. Ainda hoje consigo escutar as notas de uma rêverie, de um träumerei. E tantas outras memórias, jovem das aventuras de papel! Lembra-se daquilo que lhe disse, na tarde de domingo, a propósito das biografias de Fradique e de Veiga? Não se esqueça! As palavras consomem-nos por dentro, tanto quanto o silêncio que a música proporciona. É a realidade, jovem frenético, mas não hoje. Se a literatura é a arte da palavra e da voz, não é menos verdade que também seja a arte do silêncio, do olhar e do recolhimento. Música e Literatura são filhas do silêncio e do silêncio precisam para que consigamos alcançar os segredos mais absolutos, mas sempre aquém do Absoluto. A Arte trata-se de pequenos absolutos que guardam em si um Absoluto maior, o Absoluto. Cada obra de arte, cada escultura, cada pintura, cada composição, cada soneto, cada romance, cada edifício, cada tragédia, cada mulher é a centelha do absoluto, do divino e do indefinido. E veja bem aonde me levaram as portas e as salas da minha casa de Celorico: ao Indefinido, ao Absoluto!
Tudo por conta de minha tia que tocava aquela peça tão bela e tão íntima e tão feminina de Claude Debussy. Eram cinco minutos que continham em si todo o Universo…
Agora Efraim colhe as flores com a Zulmira, a Ti Zulmira, caseira e zeladora dos mais belos arranjos florais que vi em toda a minha vida.
O passeio termina, querido José, e a vida, como sempre, continua.
Agradeço a sua visita e o seu convite para jantar no próximo domingo, ao qual não acedo por inconveniência de Efraim, que recebe seus primos de Israel. Ficará, pois, para outro momento, esse tal anho no forno com arroz de calda e açafrão.
Quando o seu Barreirinhos terminar não hesite em pedir mais umas quantas caixas deste verde néctar, tão fresco e jovial. Em Celorico é o verde branco, a água fresca, a broa e a vida!
Um abraço do rosado Efraim, outro do
Seu


Gonçalo V. de Sousa.

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