segunda-feira, 10 de agosto de 2015

a-ver-outras-coisas: recordar Ruy Belo

Em S. João da Ribeira, concelho de Rio Maior, há dois painéis-poema que nos devolvem Ruy Belo, o poeta que por lá nasceu - e que morreu por Queluz, fez 37 anos este fim-de-semana (8.agosto.1978). 
Foram inaugurados em 2012. Hoje trago-os aqui. 

Ana Almeida

Painéis de azulejo executados pelo artista de Rio Maior Cristiano Neves.
Encontram-se no centro cívico e na esplanada típica junto à igreja matriz.


E tudo era possível 

Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer


in Homem de Palavra[s], Editorial Presença, 1999

*** # ***

Quero só isso nem isso quero

Quero uma mesa e pão sobre essa mesa
na toalha de linho nódoas de vinho
quero só isso nem isso quero

Quero a casa de terra à minha volta
cães altos na noite a minha mãe mais nova
quero só isso nem isso quero

Quero a casa do forno onde eu me escondia dos relâmpagos
e trovões quando um ferro no cesto garantia uma feliz cria à galinha chocadeira
quero só isso nem isso quero

Quero de novo fundir ao lume os soldados de chumbo que no natal me punham no sapatinho
e tirar chouriço e toucinho do guarda-comidas
quero só isso nem isso quero

Quero fazer pequeninos adobes e construir casas pelo quintal
ver chegar o verão e comermos todos lá fora na varanda de tijolo
quero só isso nem isso quero

Quero uma aldeia umas pedras um rio
umas quantas mulheres de joelhos brancos esfregando a roupa nas pedras
quero só isso nem isso quero

Quero escrever fatais cartas de amor à rapariga dos meus oito anos
rasgar essas cartas deixá-las pra sempre dentro do tronco oco da oliveira
quero só isso nem isso quero

Quero umas cabras um pastor rico um pastor pobre
o leite quente na teta o cabrito morto soprado e esfolado
quero só isso nem isso quero

Quero a courela as perdizes no ovo a baba do cuco
laranjas de orvalho no ano novo colhidas na árvore
quero só isso nem isso quero

Quero dois montes e um paul de malmequeres a cheia na primavera
a asma o ruído dos ralos as pernas sombrias das raparigas
quero só isso nem isso quero

Quero os espargos os pinheiros bravos o primeiro pôr-do-sol
as noites de baile no carnaval as bandeiras da safra
quero só isso nem isso quero

Quero que voltem os que morreram os que emigraram
matar com eles o bicho com aguardente pela manhã antes da pega
quero só isso nem isso quero

Quero ver ao vento o véu das noivas apanhar os confeitos nos casamentos
saber pelos papéis dos registos o tempo da prenhez palavra misteriosa
quero só isso nem isso quero

Quero um páteo meu e da sombra e galinhas pedreses e árvores
uma mina de avencas uma horta uma sebe de cana umas casas caídas
quero só isso nem isso quero

Quero uma enxada uma gadanha calos nas mãos cuspo nos calos
a cava mais funda da vinha o capataz a fazer o vinho correr
quero só isso nem isso quero

Quero ajudar na rega do fim da tarde calcar os buracos das toupeiras
e dirigir com o sacho a água morna nos pés até aos regos do feijão
quero só isso nem isso quero

Quero em dezembro o varejo final da azeitona o búzio a tocar
a azeitona a cair dos ramos nos panos de serapilheira
quero só isso nem isso quero

Quero o meu pai de chapéu de chuva aberto nos dias de sol
o meu pai de manhãzinha a lavar-se e a explicar-nos latim e história
quero só isso nem isso quero

Quero nu em pelota entre todos tomar os banhos no marachão
os ninhos dos pássaros as andorinhas de asas escuras no céu azul
quero só isso nem isso quero

Quero o pátio da escola a roda das raparigas a cantar à volta do plátano
o primeiro sonho de amor as primeiras palavras gaguejadas trocadas com uma rapariga
quero só isso nem isso quero

Quero as feridas nos pés para poder sair à rua descalço
o pão com conduto entre os meninos pobres no recreio
quero só isso nem isso quero

Quero ir ao vale barco a malaquejo à marmeleira
roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso
quero só isso nem isso quero

Que quero tanto que quero um mundo ou nem tanto só agora reparo
quero morder para sempre a almofada quente e densa da terra
quero só isso nem isso quero



De Toda a Terra (1976) in Obra Poética de Ruy Belo, volume 2, Editorial Presença, 1990


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