segunda-feira, 27 de julho de 2015

A propósito de despertadores ou o Dr. Sampaio


A sua história é muito curta.
Acordava pontualmente cedo e numa cegueira de jumento de nora ou no mesmo movimento circular e repetitivo que permite e sustenta o conceito de infinito, trabalhava mais horas do que um relógio.
Não sei dizer concretamente o que fazia.
Um trabalho de secretária com computador, telefone, fax, impressora, destruidora de papel, carro com motorista, telemóvel, gravata, alfinete na gravata, botões de punho, relógio suíço de pulso.
Nunca foi à Suíça.
O relógio mais viajado do que o proprietário, sapatos italianos, sendo que em rigor sapatos manufacturados em Portugal, ao caso no concelho de Felgueiras, porém etiquetados, embrulhados num saco de flanela bordado com as iniciais de uma marca mais italiana do que o Papa e encaixotados em Itália.
Nunca foi a Itália.
Pelo que também os sapatos viajaram por mais chão do que os seus pés, sapatos impecavelmente engraxados porque engraxados a diário, desde que o dia útil, no engraxador da rua onde trabalha há vinte e cinco anos e com quem perdia à conversa mais tempo do que o necessário para engraxar um par de sapatos, talvez o único gesto, acção ou tarefa, que não sujeitava a avaliação de produtividade.
Gostava de conversar com o engraxador, às vezes da filhadaputice dos colegas de trabalho, em regra de trabalho, dos negócios, fusões e participações, das bolsas, dos mercados.
Falava com muitas palavras na língua dos camones, um excesso de palavras a terminar em –ing que faziam lembrar ao engraxador o toque dos antigos telefones fixos, animais em extinção como o lince da Malcata, ao que o engraxador, que domina a língua de Camões aos pontapés, derivado do não ter concluído a terceira classe, e dispõe de um inglês suficiente para engraxar sapatos a turistas, very typical, very typical, now you have shinning shoes, e cobrar-se o triplo, ocorrência cada vez menos frequente uma vez que os pés de visita em regra a circular calçados em sapatilhas ou sandálias, porém insuficiente para traduzir as conversas com o Dr. Sampaio, pelo que as conversas, aos seus ouvidos, uma maçada e o desconsolo de nunca uma troca de linhas sobre temas à altura, 1,94m, do engraxador, um gigante que passava desapercebido por passar os dias sentado rente ao chão, porque nunca, nada, sobre o futebol do fim-de-semana, o candidato que ganhou as autárquicas na cidade, o camisola amarela, a amante do ministro, o tempo das cerejas, a chuva dos dias, o último caso de fuga do Júlio de Matos, o preço da gasolina, pelo que o engraxador, como periquito na gaiola, sim senhor doutor, obviamente,  pois claro, com certeza senhor doutor  em tom de enfado, que o mesmo é dizer resposta nenhuma sendo que, mesmo sem respostas, o Dr. Sampaio não se cansava de falar, um monólogo de desabafos, sem prestar atenção ou perceber os suspiros de desalento do engraxador que, apesar das generosas gorjetas com que era propinado todas as Sextas, como que a desejar-lhe bom fim-de-semana e dos 25 anos de cliente fiel, bodas de prata, não gostava mais dele por isso.
Teve mulher e dois filhos, casa na praia, cão e gato, teve uma amante, em rigor teve três amantes, tantas quantas as secretárias que teve, era pragmático.
Teve um enfarte de miocárdio, tinha quase quarenta e oito anos, faltavam três dias, seria Domingo, e a única pessoa que se lembraria do seu aniversário seria o engraxador de rua onde trabalhava, por pensar a ver se amanhã não me esqueço de dar os parabéns ao doutor Sampaio, porque curiosamente fazem anos no mesmo dia.

Raquel Serejo Martins



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