A sua história é muito curta.
Acordava pontualmente cedo e numa cegueira de jumento de nora ou no mesmo movimento circular e repetitivo que permite e sustenta o conceito de infinito, trabalhava
mais horas do que um relógio.
Não sei dizer concretamente o que fazia.
Um trabalho de secretária com computador, telefone, fax, impressora,
destruidora de papel, carro com motorista, telemóvel, gravata, alfinete na
gravata, botões de punho, relógio suíço de pulso.
Nunca foi à Suíça.
O relógio mais viajado do que o proprietário, sapatos italianos, sendo
que em rigor sapatos manufacturados em Portugal, ao caso no concelho de
Felgueiras, porém etiquetados, embrulhados num saco de flanela bordado com as
iniciais de uma marca mais italiana do que o Papa e encaixotados em Itália.
Nunca foi a Itália.
Pelo que também os sapatos viajaram por mais chão do que os seus pés,
sapatos impecavelmente engraxados porque engraxados a diário, desde que o dia
útil, no engraxador da rua onde trabalha há vinte e cinco anos e com quem
perdia à conversa mais tempo do que o necessário para engraxar um par de
sapatos, talvez o único gesto, acção ou tarefa, que não sujeitava a avaliação
de produtividade.
Gostava de conversar com o engraxador, às vezes da filhadaputice dos colegas de trabalho, em regra de trabalho, dos negócios, fusões e
participações, das bolsas, dos mercados.
Falava com muitas palavras na língua dos camones, um excesso de palavras a terminar em –ing que faziam lembrar ao engraxador o toque dos antigos telefones fixos,
animais em extinção como o lince da Malcata, ao que o engraxador, que domina a língua de Camões aos pontapés, derivado do não ter concluído a terceira
classe, e dispõe de um inglês suficiente para engraxar sapatos a turistas, very
typical, very typical, now you have shinning shoes, e cobrar-se o triplo, ocorrência cada vez menos frequente uma vez que os
pés de visita em regra a circular calçados em sapatilhas ou sandálias, porém insuficiente
para traduzir as conversas com o Dr. Sampaio, pelo que as conversas, aos seus
ouvidos, uma maçada e o desconsolo de nunca uma troca de linhas sobre temas à
altura, 1,94m, do engraxador, um gigante que passava desapercebido por passar
os dias sentado rente ao chão, porque nunca, nada, sobre o futebol do
fim-de-semana, o candidato que ganhou as autárquicas na cidade, o camisola
amarela, a amante do ministro, o tempo das cerejas, a chuva dos dias, o último
caso de fuga do Júlio de Matos, o preço da gasolina, pelo que o engraxador, como periquito na gaiola, sim
senhor doutor, obviamente, pois
claro, com certeza senhor doutor em tom de enfado, que o mesmo é dizer
resposta nenhuma sendo que, mesmo sem respostas, o Dr. Sampaio não se cansava
de falar, um monólogo de desabafos, sem prestar atenção ou perceber os suspiros
de desalento do engraxador que, apesar das generosas gorjetas com que era
propinado todas as Sextas, como que a desejar-lhe bom fim-de-semana e dos 25
anos de cliente fiel, bodas de prata, não gostava mais dele por isso.
Teve mulher e dois filhos, casa na praia, cão e gato, teve uma amante,
em rigor teve três amantes, tantas quantas as secretárias que teve, era
pragmático.
Teve um enfarte de miocárdio, tinha quase quarenta e oito anos, faltavam
três dias, seria Domingo, e a única pessoa que se lembraria do seu aniversário
seria o engraxador de rua onde trabalhava, por pensar a ver se amanhã não me esqueço de dar os
parabéns ao doutor Sampaio, porque curiosamente fazem anos no mesmo dia.
Raquel Serejo Martins
Cara Raquel,
ResponderEliminarGostei!
Abraço