Os livros quase ninguém os traz. Desculpam-se uns com
o esquecimento, deixaram-nos outros na casa da tia, da avó, dizem os mais
imaginativos que foram vítimas de furto no portão da entrada, roubaram-me a
mochila stôra, tinha lá o livros, o bandido fugiu. Quando é para analisar uma
obra é um caso sério, três ou quatro livros para quase trinta alunos, a
professora tristíssima leva a mão à cara, abana a cabeça, ai que desgraça, o
que é que eu vou fazer, juntem-se aí todos numa mesa, desenrasquem-se. Bem sabemos
nós o porquê da ausência das obras, pesa a verdade mas tem que ser conhecida,
não estica o dinheiro e não encolhem as despesas, entre os livros e o pão a
escolha é fácil.
Os professores, esses, coitados, muito fazem. Nunca vi
uma classe tão desmotivada. Quase vinte anos de estudos e no final do mês pouco
mais de mil euros, bem disfarçam a raiva com o gosto por ensinar, bem que
tentam mascarar o tormento para não darem os alunos conta da tristeza. Merecem,
alguns, palmas. O pior é que o pessoal não é burro, sabe da história, muitos de
professores são filhos, poucos são os que na família não têm um professor, mãe
tia ou avó. E por esta razão também os alunos desmotivados, estes, nós, mais
que todos. Pela escola se arrastam, assinaturas impercetíveis nas paredes dos
balneários, ofensas às contínuas, murros e empurrões nos professores, sabemos
nós que pouco mais somos que o meio em que estamos.
Também as matérias ensinadas pouco ajudam. Ninguém tem
bem noção daquilo que está a aprender. Quer dizer, não é bem assim, o pessoal
percebe o que está a aprender, não é disso que se trata, sabe as coisas, até
estuda de vez em quando, uns abençoados com maior entendimento que outros,
compensam os menos sortudos no maior esforço, até há algum empenho, o problema
é que são raras as vezes que compreendemos onde e quando hão-de esses
ensinamentos ter utilidade. O chegar à sala é sinónimo de descansar o traseiro,
já as cadeiras à espera, ao menos há cadeiras, a professora quase enterrada em
todos os tormentos que esconde, na cara vincada a noite mal dormida a corrigir
os pontos (os pontos sempre tão maus). Ouvimos tudo o que diz, apontamos esse
tudo no caderno (muitos nem cadernos, de nada vale o quase invisível lápis, vá
lá que o pessoal é amigo e partilha as folhas, o lápis a desaparecer), nada
dizemos, nada questionamos, caladinhos que assim é que é bom. Não há tempo para
perguntas meninos, o programa é grande e tenho que o cumprir, tenho que prestar
contas no final do ano, tem que ficar tudo dado até ao exame.
E depois os tacos de madeira das salas mais parecem
uma pasta de mil fios podres que insistem em mudar de cor com o desenvolver das
estações. Apesar de alguns ainda se aguentarem, mais são os que são subtraídos
pelo correr do tempo. Nunca são substituídos, tem a escola o que a construção
de origem lhe deu, mais que isso não merece, ao abandono está entregue, todos
os dias morre um bocadinho.
No Inverno é um frio de gelo, trinta pessoas a
congelarem, aquecedor só há um em todo o piso e é velhíssimo, pequeníssimo, uma
camada de ferrugem de cima a baixo. Grandes discussões acontecem no corredor, a
professora de Matemática a guerrear com o de Física, dá cá isso pá tou cheia de
frio, nisto junta-se a de História a de Desenho e a de Biologia, ganha sempre
esta última, todos sabem que acordou às cinco da manhã derivado a viver a duas
horas de caminho e ter três filhos. Lá com grande sacrifício lhe dão o
aquecedor e voltam para a sala cabisbaixos, a tristeza multiplicada pela
ausência de tinta que insiste em fugir das paredes, já o tijolo praticamente a
descoberto. Entre os dentes cerrados ofensas e lamentos ao próprio dirigidos,
toma que é bem feita Maria, não tinhas nada que ir para professora, a tua prima
foi para as engenharias e está bem melhor.
Pode ser que um dia, a tempo distante, a moçada acorde
e saia de casa contente. Pode ser que um dia vivam os professores e os alunos em comunhão no mesmo espaço. Pode ser que nesse dia seja a escola um lugar
sagrado, onde se aprende e se ensina, onde se educa e se é educado. Até lá, resta
esperar que alguém transforme promessas em atos, sabendo nós que de promessas
está o Inferno cheio e de atos está o céu vazio.
Gonçalo Naves
Foto tirada daqui:https: //avozcalada.wordpress.com/2014/07/21/meu-surto-humilhacao-publica/
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