Medo, da pintora Ana Cristina Dias
Sacode as
nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as
aves que te levam o olhar.
Sacode os
sonhos mais pesados do que as pedras.
Dizia, quase
cantava, a mãe baixinho ao seu ouvido a sossegar-lhe o medo dentro do corpo.
Levava tempo, a mãe
cheia de cuidados, horas escuras e nocturnas, ela um animal assustado que aos
poucos sossegava e dormia, e o sono inquieto, convulso, avulso.
A mãe sabia o que
era o medo, a amargura dos dias, a alegria nenhuma, a vontade nenhuma, de nada,
e às vezes o alívio, o raro conforto, o descanso de pensamentos tortos e indizíveis,
o sossego de não pensar em nada, nada, nada, de flutuar no vazio.
Em pensamentos a
mãe matou-se mil vezes.
Os pulsos cortados,
as cápsulas coloridas de comprimidos, o terraço no topo do prédio, sempre tão
sujo o terraço, só ela e pombos no terraço, se as nuvens baixas o terraço quase
nas nuvens, e ela não nas nuvens, um bando de pombos a atravessar o céu, e ela em
queda, o seu corpo desmantelado no passeio, fiozinhos de sangue a fazer charcos
no asfalto, depois o asfalto sem o seu corpo, o perímetro do seu corpo
desenhado a giz no asfalto, a chuva a fazer desaparecer o giz e os charcos de
sangue, a trazer sem pudor os pés anónimos dos transeuntes.
Leu que, em regra, não
se morre do embate no chão mas sim de ataque cardíaco durante a queda. O
coração dentro do corpo a explodir como uma granada.
Em pensamentos matou-se
mil vezes e não morreu.
Não se morre em
pensamentos.
Ou sobreviveu mil
vezes, diria um optimista.
Haja paciência para
os optimistas.
Não era optimista
nem pessimista, era triste e amarga.
Quem não tem dentro
de si um pouco de tristeza e solidão não é gente, é personagem de anúncio de
televisão. Serve para vender viaturas e detergentes, coisas úteis de facto, mas
sem caroço como a fruta, sem miolo como o pão.
O que será que lhes
justifica e suporta o optimismo, que lhes sustenta os sorrisos nas bocas, a
claridade dos dias, a escuridão interminável das noites?
O que será?
Qual o segredo, quando
tudo torto e escuro e apertado dentro do peito.
Bastava-lhe abrir
um jornal para ter motivos para chorar.
Não precisava sequer
de um jornal para ter motivos para chorar.
É feita de uma
matéria triste e escura.
A tristeza pode ser
tão pesada que não nos deixa respirar.
Passa os dias a
contar até dez, a respirar fundo.
E apesar de todos
os cansaços, de todos os esforços, o que não podia acontecer, aconteceu.
O seu medo maior
concretizou-se.
Percebeu que a
criança, a criação, que pôs no mundo, é feita da mesma matéria escura e triste.
A história a
repetir-se.
A tristeza a ganhar
a guerra.
Por isso, por
prematuramente perceber, porque medo reconhece o medo, desde pequena, ao seu
ouvido, soprava-lhe não canções de embalar, mas palavras de encher o peito de ar,
na tentativa de desenvencilhar os pulmões, de clarear os pensamentos, de abrir
sorrisos.
Depois cresceu e a
mãe, cada vez mais frágil, mudou a ladainha, deixou de falar baixinho ao seu
ouvido, começou a falar alto, imperativa explicava, depois de contar até dez,
depois de respirar fundo, que o medo é como uma nuvem
negra que anda sobre a nossa cabeça, basta largar a corda e deixar que o vento a
leve.
Dizia isto e batia a porta do
quarto.
Batia a porta e desaparecia
semanas inteiras.
E ela não percebia a mãe. Não
gostava da mãe.
Semanas inteiras em que o pai
parecia um trapezista, um palhaço, um artista de circo.
O pai a sair mais
cedo do trabalho para ir buscá-la à escola.
Dias de gelado,
cornetos de chocolate, mesmo se Inverno.
Passeava pela
cidade com o pai sempre a contar, a inventar, histórias de rir, tantas vezes sem
graça nenhuma, depois das quais, no máximo, ela sorria, sorria de pena, a
alegria possível, consciente da idiotice do pai.
E quando
regressavam era noite e a casa estava às escuras. O pai a adiar o regresso a
casa. Tocava à campainha e a casa assustava, porque não se mexia.
Depois, em casa, a
primeira coisa que o pai fazia era pôr um disco a girar no gira-discos, para
não serem só dois, para ter mais gente em casa.
O pai escolhia um
dos discos preferidos da mãe, mas a mãe nunca saia do quarto.
E às vezes dançavam
na carpete da sala, às vezes abraçados, um abraço na certeza de que só se
tinham um ao outro, outras vezes jogavam monopólio e o pai fazia sempre batota
para perder, batota com os dados para ir directamente para a prisão sem passar
pela casa da partida e sem receber dois contos.
Assim, mais ou menos assim, até
que um dia, muitos anos depois se cruzou com as palavras da minha mãe num poema
da Sophia, a voz da minha mãe dentro de um poema da Sophia.
O poema ou o puzzle finalmente inteiro,
completo, desvendado.
Sacode as
nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as
aves que te levam o olhar.
Sacode os
sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu
cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que
os meus gestos te trespassem
De
solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que
a minha voz queime o ar que respiras
E os teus
olhos nunca mais possam olhar.
E nesse dia chorou, chorou como
um vulcão.
Chorou porque tudo viu sem a
névoa da decepção.
Chorou porque percebeu.
Pela primeira vez percebeu a
mãe, imaginou a vida da mãe, os últimos anos de vida da mãe.
Teve de imaginar, porque não
viu, porque não estava lá para ver.
Sem resistência, sem paciência,
afastou-se.
Em rigor fugiu, ou não fosse
humano, não mais do que fraco e humano, a felicidade alhear-se do sofrimento. A
defesa possível. A cobardia.
Fugiu, ou tentou ser feliz.
Que a tristeza da mãe como um
vírus, contaminava, exauria, comia tudo o que era alegria e boa vontade, uma
tristeza gorda, pesada, sem tamanho.
Por isso a mãe de quarentena.
Por isso a mãe não foi ao seu
casamento e mal lhe conheceu os filhos, um menino e uma menina.
Maria Dulce, mãe. Como tu, mãe.
E a mãe sem olhar para o
carrinho onde a pequena criança dormia, numa triste centelha de lucidez, a
dizer baixinho, a repetir baixinho como se um mantra mau, a minha mãe devia
ter-me chamado Maria Dolores.
A tua avó devia ter-me chamado
Maria Dolores.
A mãe a sair da sala sem um
beijo, sem um adeus, a fechar-se no quarto, no seu mundo.
E no quarto a mãe à janela. A
janela fechada, a cortina corrida.
A mãe a ver a vida a passar na
rua embrulhada em luz, em vidro, em linho bordado.
A mãe a dizer-lhe adeus sem lhe
dizer adeus sem tirar os olhos da janela.
Foi a última vez que viu a mãe,
de costas, imóvel à janela, lembrava um quadro do Hopper, para anos depois
encontrar a mãe dentro de um poema da Sophia, para por fim chorar, chorar de
cansaço, de tristeza, de saudade, de revolta, de alegria, chorar o que não
chorou no funeral da mãe, dia de chuva em que o alívio foi maior do que a dor,
o que fez com que a dor fosse ainda maior do que o alívio.
Por fim chorou pelos abraços
que sempre lhe faltaram, pelo abraço de adeus que nunca teve, mesmo se um
abraço incompleto, mesmo se só os seus braços a abraçar o corpo imóvel da mãe, mesmo
quando a mãe, de costas para ela, de olhos no seu mundo por uma janela.
***
Este texto, esta small SONG, teve como ponto de partida o quadro supra,
trabalho da pintora Ana Cristina Dias.
Mais trabalhos em:
http://eu-e-a-pintura.blogspot.pt/.
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