Meu querido José
Cá lhe escrevo, já com
os pés nas inúmeras ilhas gregas. Que sol, que céu, que mar, que povo, jovem
das andanças de papel!
Tenho peregrinado por
todos estes arquipélagos onde Dédalo brincou e Zeus amava todas as criaturas
sem ainda se haver apaixonado por Europa, essa princesa humanamente imortal,
Isolda dos cabelos dourados de uma antiguidade anterior àquela que vem nos
livros.
Pois bem, tenho comido
e bebido de tudo o que pela magnânima Hellas se cultiva e cozinha. Veja bem que
até virei entusiasma daquela dança que Zorba tão bem performizou! Quem diria!
Eu, celeste bebedor de néctares e de ambrósias carnais, dançando sirtaki como
um cretense!
O tempo recomenda-se,
caro amigo. Hélio tem sido condescendente ao ponto de Poseidon estender o seu
manto azul e líquido por toda esta região bendita pelas oliveiras, pelos deuses
e pelos filósofos!
Envio-lhe um texto que
lhe prometi na semana que passou. (Ainda se lembra da questão do tempo e da sua
itinerância? Reflicta, jovem das dionisíacas mensagens!
Efraim vive debaixo de
água, nadando ao lado das raias enquanto eu vou preferindo um espreguiçadeira,
um panamá luminoso, um ouzo bem
gelado, e um livro. Ou o horizonte.
Um filosófico a
marítimo abraço deste
Seu
Gonçalo Viana de Sousa
Assim que embarcamos neste cruzeiro com um nome
insoletrável, a primeira coisa a fazer-se, como bom turista e como flâneur que se preze, é vaguear pelos
camarotes, pelos luxuosos halls,
pelos cafés e pracetas e casinos e pelo convés, da proa à popa, na segurança e
descanso de que as nossas malas foram acomodadas nas nossas suites, e as roupas
e acessórios devidamente arrumados, perfumados e preparados para os lautos e
marítimos jantares. Após esse primeiro trottoir
(cansativo, pois o cruzeiro tem centenas de metros e pisos e pisos de passeios
e lojinhas e bares e restaurantes, sento-me num bar para respeitar essa que é a
tradição, diria Campos, “antiquíssima e idêntica” de beber um gin bem gelado.
Bebi o meu gin de ervas mediterrânicas, recomendado pelo capitão do cruzeiro,
meu primo em segundou ou terceiro graus. Havíamos zarpado de Génova e em menos
de duas horas encontrávamo-nos em Cagliari, na insular Sardenha. Lembro-me
disto, pois havia uns televisores que iam dando informações a propósito de isto
e daquilo, de tudo e nada. Tanta informação e, contudo, tanta escuridão! Não
sei se terá sido pelo embalar dos gins, que, como sabe, no meu caso, são como
as cerejas, ou pela brisa que soprava pelos dedos de Zéfiro, a verdade é que
adormeci. Devo ter dormido o equivalente a um capítulo de um romance breve,
jovem das ficcionais verdades!
Acordo com um impressionista e laranja lusco-fusco de
Cagliari. Apressado, dirijo-me para o meu camarote, pois a hora de jantar
aproximava-se e era necessário um duche como imperativo categórico e uma camisa
lavada e sapatos engraxados como verdade universal!
Assim que me aproximo da porta do meu camarote sinto
um intenso cheiro a tabaco de enrolar e a cinza queimada misturada com um
adocicado cheiro de água-de-colónia francesa. Entro no meu camarote e para meu
espanto o fumo pairava pelo quarto e pela escrivaninha, onde um sujeito moreno,
dos seus quarenta anos, sorvia impetuosos e sucessivos cigarros. O seu nariz
adunco e o seu pensativo bigode compunham uma face onde era indispensável o
queirosiano monóculo. O homem andava às voltas com um gigante manuscrito onde
eram relatados fartos e inúmeros episódios da pequena e provinciana Lisboa.
Pelo cão! O Eça de Queirós estava sentado na escrivaninha do meu camarote a
escrever o seu maior romance e a única pilhéria que fui capaz de lhe dizer foi
a seguinte: Arre homem, pelo menos abra a janela que o ar aqui está de escachar!
Não foi o facto de um escritor do século XIX estar à minha frente escrevendo a
sua Magnum Opus que me estarreceu,
mas antes o facto de estar a fumar com a janela fechada! E a fumar num camarote
expressamente para não fumadores! O José sabe como o fumo do tabaco me irrita
solenemente! Eça olha para mim, solta uma gargalhada e responde-me, Olá menino!
Então isto são horas de se vir aprontar para o jantar? Foi o ginzinho que caiu
mal, menino? O autor de Os Maias
estava vestido de forma imaculada, límpida, pedante, burguesa e oitocentista. E
eu com os sapatos por engraxar e a camisa por engomar, pensava, enquanto Eça fazia
galhofa da minha situação. Oiça lá, José Maria, o que faz no meu camarote? Isto
não é um paquete com destino ao Suez. O queirosiano inventor voltou a sorrir,
mas desta vez com um certo torcer de lábio. Depois de soltar uma longa e
irónica fumarada disse-me, Se vamos ou não para o Suez, menino, quem não vai
jantar é você que mais parece um
pinto pintão. E a sua roupa não está aqui, menino, você enganou-se. Mas porque pepineira andou você metido? Ahaha, se madame
d’Oriol o vê assim, desmaia! Imagine que Ana de Leon jantava na nossa mesa? Lá se ia o chic importado às prestações e que vem empacotado pelo vapor da
Europa! Ahahaha. Menino. Lave-se, vista-se, perfume-se e durante o jantar não
faça figura de maganão! Imagine o meu desespero e angústia! É que no fundo era
eu quem estava a mais no camarote, que afinal não era o meu, era este seu
servo, para não falar que invadi a mente do nosso grande romancista numa altura
muito má. A certo ponto, este vira-se para mim e diz-me com aquele seu gesto
irónico e delicioso: Faça o favor de sair do meu quarto e da minha realidade,
ora pois! Acorde e volte lá para o sítio de onde veio. Faça boa viagem e seja chic, menino, pois essa camisa
amarrotada denuncia patuscadas suspeitas nas tias Camelas!
Co’a breca, jovem das literaturas doidas, tive mais um
sonho literário! E com Eça de Queirós! Veja lá bem a minha sorte!
Acordo, agora verdadeiramente, e disparo as pernas para
o meu camarote. Abro a porta. O Silêncio e a janela que deixa ver o lusco-fusco
de Sardenha. Acredita que o cheiro àquele mesmo tabaco que o nosso romancista
fumava pairava no ar?
Vá-se lá perceber a mente humana!
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