Meu querido José
Escrevo-lhe
a bordo de um cruzeiro que zarpa o vento e os céus até Malta. Sinto-me um
Álvaro de Campos do Opiário, veja lá,
jovem frenético! Escrevo-lhe numa das “pracetas” do cruzeiro. (Este barco mais
parece uma cidade náutica, anfíbia, pois imenso é o luxo e o conforto. Por
vezes nem me apercebo que me encontro num navio, pois a oscilação do mar não
existe. Só temos a sensação, infinita e líquida, do céu e do mar, azuis e
racionalmente labirínticos. Efraim adora estas viagens a bordo. Eu vou bebendo
o que tenho para beber. Não fumo, como sabe. Nunca acreditei na estética do
charuto ou do cigarro. Esse “habano” que tanto glorifica pelos seus poderes
feéricos são para mim veleidades. Não preciso deles para criar o meu efeito,
para ter as minhas gratificações interiores. Além do mais, o álcool deixa-nos
mais perto dos deuses. O tabaco engana-os, pois estes vêm descendo de
mansinho, pensando que estão a ser ofertados e louvados quando, na verdade,
estão a ser ludibriados e esquecidos. Distantes vão os tempos da mirra e do
incenso e das ervas das montanhas. Presente é a era dos “oásis de inutilidades”
não somente ruidosas, mas também hedonistas e pseudo-tudo e nada.
Quando
receber esta missiva estaremos a chegar a Malta, no dia em que o sonho
napoleónico acabou. Sei que tem uma certa predilecção pelo pequeno sujeito que
chegou a grande líder. Olhe que essa sua posição, na sua idade, pode ser
problemática, pois tanto será visto como megalómano, por um lado, e
pseudo-intelectual, por outro. Mas, como o conheço, isso pouco lhe interessa.
Junte-se ao clube. (Mas deixe o “habano” de lado, pois não aguento com esse
colonial odor!).
Desta
vez pensei em enviar-lhe mais um sonho literário que tive, a bordo, na noite
passada, enquanto o navio dormitava nas praias da Sardenha. Mas ficará para
outro momento. Posso adiantar-lhe que era um sonho de bigodes e monóculos e
cigarros. Muitos e pensativos. Penso que já descortinou de quem falo.
Pois
bem, volto a um pensamento anterior. Dizia-lhe que havia de receber esta
missiva no futuro da minha escrita, que será o passado da sua leitura. Note
bem: escrevo num presente que é só meu pois somente a mim mo é permitido viver
para que o José o possa ler num futuro que será só seu. Deste modo, passado,
presente e futuro não se conjugam, não são um só. Apresentam-se
simultaneamente, mas não correlativos, mas não em simultâneo. Talvez
sobrepostos.
É
interessante toda esta problemática do tempo, jovem dos ideais luminosos e
frescos.
E
quando ler estas palavras (re)criará todo o meu passado a escrever, sentado
numa das “pracetas” deste cruzeiro, assim como eu o imagino, de antemão,
concebendo todos estes gestos, os meus e os seus, sobrepostos no tempo, no
espaço e na vida.
O
sol aperta e as tardes têm a justiça de um calor filho de algum dragão
wagneriano.
Assim,
quem estará mais próximo da verdade? Eu, que escrevo no seu passado, no meu
presente e que o imaginarei no futuro? Ou o José que me lerá no seu futuro que
será o meu passado que jamais seria o seu presente? Demasiada filosofia! Ainda
para mais a bordo de um paquete tão chic!
Efraim
já gastou mais do que devia nos jogos de casino. A sorte dos semitas é que o
dinheiro é para eles como a terra prometida: um lugar fértil onde jorram e
gorgolejam a farinha e o mel dos rochedos.
Hei-de
visitar a Grécia, essa Hellas esplêndida como uma rocha granítica. A Democracia
há-de triunfar, meu caro. A Europa abrirá os olhos, como sempre, tarde demais. Mas
a Grécia prevalecerá. (Assim como o dinheiro e a usura).
Teremos
de visitar, com uma obrigação à la Kant, que é como quem fala de imperativos
categóricos!, o templo de Delphoi, caro jovem dos mitos “post-românticos”:
Terminei há dias a leitura daquele seu conto a propósito de Anteu. (…) É o que
lhe digo sempre. Continue e apareça mais vezes!
Bom,
a missiva vai longa e devo procurar o formidável Efraim, pois hoje é noite de
jantar italiano.
Beba,
(deixe os habanos), viaje e ame.
Deste
seu
Gonçalo V. de Sousa.
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