sexta-feira, 5 de junho de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Meu caro José

Escrevo-lhe mais tarde, nesta Sexta-feira de madrugada pois passou-se um episódio caricato durante esta semana que daria para um boa narrativa de mistério e de loucura!

Andava eu e Efraim passeando pelo Jardim Botânico, isto na Quarta-feira pretérita, quando uma velha toda vestida de negro vem ter connosco. Era uma velha enrugada, com a pele da cor das coisas solares e ao mesmo tempo líquidas, daquelas peles que sofreram imenso, e em silêncio. As roupas negras eram elegantes e sóbrias, e usava um perfume que fazia lembrar as janelas dos quartos das minhas temporadas na Provence.
Usava uma bengala para se apoiar, e óculos de aros dourados e redondos. O cabelo apanhado em cachos que outrora seriam a perdição de quantos poetas e folhetinistas houvesse.
Os senhores não viram por aí nesses bancos um livro de capa grossa?
Efraim havia, minutos antes, avistado uma primeira edição da Demoiselle aux Camelias do Dumas filho num banco da alameda das Tílias, tendo-o guardado na sua sacola de passeio. (Sempre achei aquela sacola de um mau-gosto tremendo e desnecessário, mas como sabe, Efraim é de vontade férrea quando se fala daquela sacola que lhe foi ofertada pela princesa da Jordânia.
Minha senhorra, é este aqui?, pergunta-lhe o nosso semita. É esse mesmo, cavalheiro. Muito obrigado pela sua gentileza e generosidade. A velhinha estava radiante, os seus olhos faiscavam de felicidade. E tudo isto por conta de um livro, já viu? Continuo a dizer-lhe que os livros irão continuar por cá durante muitos séculos, pois tudo há-de perecer, as loucuras virtuais, as sociedades de plástico, tudo! E o livro permanecerá grande, glorioso, altivo, nas estantes das livrarias, das bibliotecas, dos leitores e da eternidade!
Bom, a senhora agradeceu-nos imenso e continuou no seu passo regrado, lento, firme e determinado. Caminhava como se fosse ao encontro da eternidade.
Continuámos o nosso passeio higiénico, fazendo o trottoir necessário. Voltámos a casa. Nessa mesma noite, decidi pegar na minha edição de A Dama das Camélias, também uma primeira edição, oferecida pelo próprio Dumas à minha família. (Já não sei se a meu bisavô Marco António, ou a seu irmão, Luís Filipe). Qual o meu espanto quando noto que o livro havia desaparecido, assim como alguns outros livros que agora não interessam para aqui.
Perguntei ao Efraim se tinha pegado no livro para viajar pelo mundo de Margarida Gautier, mas o nosso semita respondeu negativamente.
Depois de ter vasculhado toda a biblioteca, sentei-me na secretária onde tenho por hábito escrevinhar e eis que me deparo com um envelope lacrado com selo vermelho em forma de uma flor que me aterrou. As lacrimosas camélias!
Um delicado perfume de lavanda e alfazema perfumava o papel. Como na Provence.
Bom, fiquei estupefacto quando abri o envelope e li a missiva. Era Margarida Gautier quem me escrevia, agradecendo-me, e a Efraim, pelo delicado acto daquela tarde na Alameda das Tílias! Deixou uma morada, pois esperava uma visita, ao som do gás e do Cancan, enquanto o sorvete era derramado em longos e festivos flutes de champagne.
Chamei Efraim que também leu a missiva. Inacrreditável!, dizia o formidável semita. Que vais fazerrr, Viana de Sousa? Vou escrever-lhe, ora pois!, respondi com a maior das simplicidades.
Lá comecei a escrever uma missiva, admirando-lhe os gestos e as atitudes, a sua beleza, e a desse Paris tão chic e tão exemplo sumo e ultra da civilização. Escrevi uma longa carta, entre o flirt e o galanteio, com toques de ironia e de estética.
Assim que termino a carta e escrevo num envelope timbrado a sua morada, acordo com o Rufus a lamber-me as mãos que se estendiam pelos braços do sofá largo e castanho!
Co’a breca, jovem das românticas alturas! Tive um sonho literário!

Termino por aqui a missiva, e julgo mais que justificada esta minha ausência de ontem, pois ainda ando em busca de algum sentido para este sonho rocambolesco.
Efrraim mandou abrrrraços e saúde.
Eu envio-lhe estas palavras, o convite que segue abaixo e o fraterno abraço deste sempre
Seu

Gonçalo V. de Sousa.


P.S. Com tudo isto, peço-lhe que volte a adiar a impressão de Nicosia.
A verdade é que não sei onde raio foi parar a minha primeira edição de A Dama das Camélias! E o mistério continua!





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