Meu caro José
Escrevo-lhe mais tarde, nesta Sexta-feira de
madrugada pois passou-se um episódio caricato durante esta semana que daria
para um boa narrativa de mistério e de loucura!
Andava eu e Efraim passeando pelo Jardim
Botânico, isto na Quarta-feira pretérita, quando uma velha toda vestida de
negro vem ter connosco. Era uma velha enrugada, com a pele da cor das coisas
solares e ao mesmo tempo líquidas, daquelas peles que sofreram imenso, e em
silêncio. As roupas negras eram elegantes e sóbrias, e usava um perfume que
fazia lembrar as janelas dos quartos das minhas temporadas na Provence.
Usava uma bengala para se apoiar, e óculos de
aros dourados e redondos. O cabelo apanhado em cachos que outrora seriam a
perdição de quantos poetas e folhetinistas houvesse.
Os senhores não viram por aí nesses bancos um
livro de capa grossa?
Efraim havia, minutos antes, avistado uma
primeira edição da Demoiselle aux
Camelias do Dumas filho num banco da alameda das Tílias, tendo-o guardado
na sua sacola de passeio. (Sempre achei aquela sacola de um mau-gosto tremendo
e desnecessário, mas como sabe, Efraim é de vontade férrea quando se fala
daquela sacola que lhe foi ofertada pela princesa da Jordânia.
Minha senhorra, é este aqui?, pergunta-lhe o
nosso semita. É esse mesmo, cavalheiro. Muito obrigado pela sua gentileza e
generosidade. A velhinha estava radiante, os seus olhos faiscavam de
felicidade. E tudo isto por conta de um livro, já viu? Continuo a dizer-lhe que
os livros irão continuar por cá durante muitos séculos, pois tudo há-de
perecer, as loucuras virtuais, as sociedades de plástico, tudo! E o livro
permanecerá grande, glorioso, altivo, nas estantes das livrarias, das
bibliotecas, dos leitores e da eternidade!
Bom, a senhora agradeceu-nos imenso e continuou
no seu passo regrado, lento, firme e determinado. Caminhava como se fosse ao
encontro da eternidade.
Continuámos o nosso passeio higiénico, fazendo o trottoir necessário. Voltámos a casa.
Nessa mesma noite, decidi pegar na minha edição de A Dama das Camélias,
também uma primeira edição, oferecida pelo próprio Dumas à minha família. (Já
não sei se a meu bisavô Marco António, ou a seu irmão, Luís Filipe). Qual o meu
espanto quando noto que o livro havia desaparecido, assim como alguns outros
livros que agora não interessam para aqui.
Perguntei ao Efraim se tinha pegado no livro para
viajar pelo mundo de Margarida Gautier, mas o nosso semita respondeu
negativamente.
Depois de ter vasculhado toda a biblioteca,
sentei-me na secretária onde tenho por hábito escrevinhar e eis que me deparo
com um envelope lacrado com selo vermelho em forma de uma flor que me aterrou.
As lacrimosas camélias!
Um delicado perfume de lavanda e alfazema
perfumava o papel. Como na Provence.
Bom, fiquei estupefacto quando abri o envelope e
li a missiva. Era Margarida Gautier quem me escrevia, agradecendo-me, e a
Efraim, pelo delicado acto daquela tarde na Alameda das Tílias! Deixou uma
morada, pois esperava uma visita, ao som do gás e do Cancan, enquanto o sorvete era derramado em longos e festivos flutes de champagne.
Chamei Efraim que também leu a missiva.
Inacrreditável!, dizia o formidável semita. Que vais fazerrr, Viana de Sousa?
Vou escrever-lhe, ora pois!, respondi com a maior das simplicidades.
Lá comecei a escrever uma missiva, admirando-lhe
os gestos e as atitudes, a sua beleza, e a desse Paris tão chic e tão exemplo sumo e ultra da civilização. Escrevi uma longa
carta, entre o flirt e o galanteio,
com toques de ironia e de estética.
Assim que termino a carta e escrevo num envelope
timbrado a sua morada, acordo com o Rufus
a lamber-me as mãos que se estendiam pelos braços do sofá largo e castanho!
Co’a breca, jovem das românticas alturas! Tive um
sonho literário!
Termino por aqui a missiva, e julgo mais que
justificada esta minha ausência de ontem, pois ainda ando em busca de algum
sentido para este sonho rocambolesco.
Efrraim mandou abrrrraços e saúde.
Eu envio-lhe estas palavras, o convite que segue
abaixo e o fraterno abraço deste sempre
Seu
Gonçalo
V. de Sousa.
P.S. Com tudo isto, peço-lhe que volte a adiar a impressão de Nicosia.
A verdade é que não sei onde raio foi parar a minha primeira
edição de A Dama das Camélias! E o
mistério continua!
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