Silêncio, por favor.
Luzes piscando lá fora. Noite escura e a solidão dos dias. Talvez
fosse por isso que ainda marcava encontros com o amigo Jean, um chef de
cozinha que entre outras coisas lhe preparava jantares soberbos.
Quinta-feira, noite fresca de outono, seria bom um souflé de legumes e
uma taça de vinho tinto. Jean era um cinqüentão convicto de sua
solteirice, amava a boa vida, sabia ser gentil e desperdiçava talento
com qualquer mulher que visse. Era uma boa companhia para deixar a vida
passar.
Melissa saiu no trânsito afogada em cansaço; conservava sempre sua
potente disciplina. Olhava o celular, passava batom, folheava o processo
deixado no banco do passageiro, reclamava a falta de educação dos
motoristas. Melissa era rígida. Unhas perfeitas em tom pastel, cabelo
impecável, calça de linho azul marinho e camisa branca. Calçava saltos
que anunciavam sua elegância. Falava francês, traduzia bem o inglês,
estudava alemão, conhecia o mundo inteiro, não tinha problemas com
dinheiro e já completaria quarenta no mês que vem.
A mesma estação tocava no carro a semana inteira. Música clássica criava atmosfera para agenda cheia.
De repente o desejo de ser outra. Aquele velho desejo de assumir que tudo aquilo era um baita engano.
Melissa mudou de estação.
“Silêncio, por favor, enquanto esqueço um pouco a dor do peito, não
diga nada sobre meus defeitos, eu não me lembro mais quem me deixou
assim.
Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos para ver as meninas e nada mais nos braços, só este amor assim descontraído.
Quem sabe de tudo não fale quem sabe nada se cale, se for preciso eu
repito, porque hoje eu vou fazer, ao meu jeito eu vou fazer: um samba
sobre o infinito.”
Olhou para o céu negro e não viu nenhuma estrela por ali. Olhou para o
espelho retrovisor e viu o azul ser invadido por lágrimas.
O sinal ainda amarelo, Melissa estancou. Atrás gesticulava o
motorista pedindo que ela fosse, mas já era tarde. Daí ele não se
contentou, manobrou, parou do lado direito do carro dela enlouquecido de
pressa. Disse alguma grosseria.
– Motoristas de taxi são abusados, pensou Melissa.
Olhou de novo, querendo provocar o sujeito com cara de desdém.
Um homem de pele escura e barba cerrada, cabelos intensamente negros e
olhos que pareciam pintados com kajal. Encarou Melissa com estranheza.
Melissa virou o rosto um pouco tensa. Notou o estreitamento da rua a
sua frente, o sinal abriu, ela encarou novamente o taxista e deixou que
ele tomasse a frente.
– Lindo. Meu deus que homem lindo é aquele.
A canção se repetia. Paulinho da Viola devolvia o ritmo ao sangue de
Melissa. Um batuque de caixinha de fósforos, um amor descontraído, um
infinito para vislumbrar. Era tudo que ela mais queria.
Ele deu seta, virou à direita, Melissa o seguiu. Nem sabia mais o que
estava fazendo. Virou esquerda, direita, seguiu em frete, aguardou
descer o passageiro.
O taxista percebeu a intenção da moça e acelerou mais um pouco. Ela
avançou, deu seta para ultrapassá-lo. Ele encostou quase na entrada de
um boteco, abriu o vidro e gritou:
– Desculpa, moça, eu estava nervoso ali atrás não queria…
– Ah, tudo bem, eu só queria saber seu nome.
– Como?
– Seu nome.
– Meu nome? Anil.
– Anil? Você é indiano ou algo assim?
– Sou de Mumbai.
– Me dá seu número, Anil.
Anil desceu e estendeu um cartão. Era alto, esguio, braços fortes, no pescoço um colar de contas.
– O que é isso no seu pescoço?
– Isso? Ah, é um japamala.
– Gostaria de tomar um café?
Melissa desconcertou com sua atitude. Pensou em Jean e no esplêndido
jantar com porcelana delicada e talheres de prata, pensou em tudo que já
tinha e o quanto isso não era nada porque afinal de contas sua vida
continuava sem graça.
Entraram juntos no café, Melissa e Anil. Um contraste que fazia bem aos olhos. O sapato de verniz, o all star azul tão gasto.
A conversa seguiu solta, leve, numa fluidez absoluta. Melissa
enamorada dos olhos tão bem desenhados de Anil. Anil enamorado da brisa
que aos poucos revelava a mulher.
Perguntou se Anil cozinhava, ele respondeu que sim entregando a mão
para que Melissa sentisse o perfume impregnado de curry. Melissa sorriu;
Anil perguntou por que.
– Com você, Anil, troco alta gastronomia por qualquer misto quente.
Anil sentiu um pouco de vergonha numa mistura de desassossego que já lhe corria o corpo todo.
Penélope Martins
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