sábado, 13 de junho de 2015

Acho que me tenho esquecido de viver

Maria Carla não sei o que se passa comigo, parece que sou todo noite, não há manhã em mim, estou tão triste que às vezes me ponho a olhar pela janela e tudo o que vejo é um vazio preto tomando conta do que sou, tudo tão preto e afinal eu tão invisível.
Tudo o que faço é sair do prédio e caminhar até à mercearia duas ruas abaixo a fim de comprar um pacote de batatas para o almoço a teu mando, dizes que é para acompanhar o lombo mas quando chego não há lombo não há nada, não há nada que não uma mesa transbordando vazio e o resto da mobília olhando-me na tentativa de me tocar o silêncio. Contento-me com as batatas, não é esse o problema, sento-me na poltrona e debaixo dos meus pés todas as idades do mundo Maria Carla. Sabes o que é ter todas as idades do mundo debaixo dos pés, a tua a dos meus irmãos a do Francisco, lembras-te do Francisco entretanto casou-se, íamos a casa dele de quinze em quinze dias ou melhor de três em três semanas para almoçarmos mas no fim ficávamos lá a tarde toda na galhofa, bons tempos tão bons, eu e ele sentados no sofá tu e a Catarina cochichando atrás da porta pensando que a porta suficiente para vos abafar as palavras mas vocês sempre tão enganadas e nós fazendo tão grande gozo disso Maria Carla, nessa altura não havia silêncio, o mundo era nosso e eu tão eterno.
O problema é que entretanto multiplicaram-se os tempos e o mais que faço é ir à mercearia duas ruas abaixo a fim de comprar batatas para acompanhar o lombo mas afinal nunca lombo, Maria Carla o que me aconteceu, acho que me tenho esquecido de viver. Sou tão novo mas pareço tão velho, levanto-me mais cedo que o Sol e desde logo uma dor derivado ao reumático (sou tão novo não posso ter reumático) e portanto eu afundado na poltrona, faz-se a minha vida entre a poltrona e a mercearia duas ruas abaixo, vai-se o meu fim desenvolvendo na continuidade que esta tristeza traz, o que se passa comigo Maria Carla. O mais estranho é que até temos uma vida boa, temos uma casa um carro uma mesa de jantar com abas nas extremidades e aos Sábados a matiné, temos uma vez por mês os teus pais e no Natal os meus Maria Carla, temos a miudagem do meu irmão temos a Margarida e o Afonso que nos visitam de vez em quando e trazem sempre cartas para jogarmos (nunca sei onde pus as minhas cartas Maria Carla, nunca tive problemas de memória o que se passa comigo), não somos pobres, não sou pobre, só acho que me tenho esquecido de viver. E é tão grande este vazio que às vezes dou por mim pensando se realmente conheço as estações do ano, afinal o que é isto será Primavera será Verão, dou por mim tão pouco nítido Maria Carla, dou por mim olhando-me nos joelhos e vejo-os tão cansados, cansados de terem o tudo e de lhes faltar o nada. Também eu assim Maria Carla, tenho tudo, tudo que é como quem diz, não tenho o lombo mas não tem problema porque me contento com as batatas, tenho tudo Maria Carla, tenho tudo e sinto-me tão pobre, sou tão grande e sinto-me tão pequeno, o que me falta Maria Carla, acho que me tenho esquecido de viver.

Gonçalo Naves


Foto tirada daqui: http://www.lusoviagens.com/tematica/ofertas/viajes/2527/atividades_na_grande_lisboa

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