Meu querido José
(…) . Devo dizer-lhe
que está um esplendor, um mármore clássico! Continue, jovem das ekfrásticas
viagens!
Dizia-lhe, na outra
missiva, que um dia talvez lhe explicasse, e cito-me, “o porquê de me considerar um flâneur, meu querido
jovem do Romantismo Redentor.”
Eis agora o tempo de
publicar parte dessa explicação que será seguida por mais uma impublicável
impressão destes impossíveis Cadernos de
Nicosia.
Desde muito cedo que a
minha vida, por contextos e situações diversas, foi propensa à viagem. Desde as
promessas que minha mãe fizera a um santo bem perto da sua aldeia, São Gonçalo
de Amarante, que o meu destino parecia estar traçado para um ciclo, não de anéis
wagnerianos, mas de viagens líquidas, constantes e universais.
Como deve imaginar,
caro jovem frenético, não irei aqui traçar a minha biografia até porque
acredito que as biografias são formas de canonizarmos a existência de alguém
através de memórias que irão, sem dúvida alguma, tornar o biografado num
sujeito interessante e excêntrico. A minha biografia é simples. E aqui cito o
mestre Caeiro:
"Se depois de eu morrer,
quiserem escrever a minha biografia,
não há nada mais simples
tem só duas datas – a da minha nascença e a da
minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são
meus.”
Já jovem e sonhador e
discípulos de todas as Ideias que fervilhavam na minha família, grupo de amigos
e conhecidos, compreendi que a necessidade de estar constantemente num lugar
que não este, que não aqui e que não agora era uma realidade, melhor dizendo,
era uma lei universal que nenhum Kant filosofou.
Desde as primeiras
grandes viagens - Estados Unidos, França, Brasil, Itália, Turquia (não
necessariamente por esta ordem) – que esse impulso de espírito surgia como a
respiração ou o sangue que bombeia o corpo.
Em contacto com outras
culturas, com outras civilizações, com outros pensares e formas de amar percebi
que a liberdade, valor essencial da Arte, da Vida e do Amor, como dissera
Schiller, está acima de qualquer outro assunto. Ainda que nos dias de hoje um
bom prato, um bom copo de vinho e um bom Cohiba me seduzam ao ponto de adiar
por umas horas as minhas líquidas viagens!
A vantagem de ser
viajante, querido jovem dos amores de papel, é esse carácter literalmente
liquefeito as relações. A estabilidade não é uma realidade, é sim uma ameaça a
quem traçou como destino ou coisa que o valha o deambular. Em certa medida, sou
filho desses seres maravilhosos que faziam campanhas pela Europa, ainda no
tempo dos peregrinos. Lembro-me desse Voltaire ou do formidável Goethe,
vadiando pelas Itálias e pela Península onde descansa este canto de país. Se
por um lado encontro conforto estético nas minhas deambulações, nas minhas impressões,
nestas minhas viagens, por outro lado, acalma-me saber só, acompanhado por
Efraim, esse velhaco!, (que já se encontra no país, moreno como um
mediterrânico ao lusco-fusco!). Um dia conto-lhe a história deste meu Sancho de
nome Efraim Melquisedec!
Como lhe estava a
dizer, a solidão e o conforto estético tornam-se, portanto, opções de vida
essenciais, deslumbrantes e sempre aliciantes. Perdoe-me estas rimas internas,
mas criam o seu efeito de exqui!
Se por um lado pertenço
a essa geração de peregrinos que têm longa tradição na veneranda Europa, não é
menos verdade que do outro lado se encontra a influência de meu pai, Augusto
Viana de Sousa, e de meu avô, esse dandy de nome Carlos Viana de Sousa.
Pouco mais há a dizer
quanto a meu pai e a meu avô. Homens cultos, elegantes, meu avô mais diletante
que meu pai, que era elegante na sua forma silenciosa de amar as coisas belas.
Foram estas duas
figuras paternais, muito mais que toda uma Escola, que lançaram em mim as
fundas bases de uma filosofia de vida, e de vinhos e charutos e licores e
gostos (e mulheres).
Para o flâneur a cidade
é necessária não como monstro de betão e dióxido de carbono, mas sim pelos seus
encantos humanos, nas multidões trôpegas, sôfregas e frenéticas, na sua
indiferença universal. É nesse contraste que se encontra a delícia de viver.
Sentado num barco de jardim, respirando calmamente os ares das manhãs e dos
pássaros , observando, de perto, e esboçando um sorriso delgado, a correria de
milhões de almas, ou de cabeças sem alma e sonhos dentro, que trepam pelos
elevadores e pelos passeios, em busca do pão ou do sentido da vida.
Mas a delícia dos
quartos e das varandas e das salas dos hotéis cosmopolitas é inigualável!
E sobre isso haverei de
voltar a falar, mas não hoje, que a missiva vai longa e ainda há uma impressão
dessa Nicosia que precisa ser transcrita por si, Orpheu das provincianas janelas!
Aguardo novas suas
quanto àquele assunto que dizia inadiável!
Abraço apertado deste
sempre
Seu
Gonçalo V. de Sousa.
P.S. Meu caro José,
deixe para lá a impressão dessa soalheira Nicosia para outro dia, pois esta
missiva é toda uma refeição literária!
Viva, leia, viaje, beba
e ame!
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