sexta-feira, 22 de maio de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Meu querido José

Efraim continua pela Europa, desta vez turista pelas margens do Neva, o maganão! Anda revisitando partes de Petersburgo e bebendo copinhos de vodka com  pão de couve e caviar do Mar Cáspio! Diga lá se não é caso para ficar nerrrrvoso?
Envio-lhe mais uma impressão dos Cadernos de Nicosia, essa coisa assim chamada (nem sei mais como lhe chamar!). Notou já que a sua teimosia em querer etiquetar tudo está passando para mim? Interessante como nos influenciamos por aquilo e por aqueles com quem existimos para dentro e para o mundo.
Agradeço a sua visita e o seu presente que, como bem sabe, é escusado. A sua companhia basta. Como sempre.
Jovem das viagens na nossa literatura, esta impressão queria ser um caminho a percorrer pelos cumes da solidão, mas tudo é incerto e pedregoso, de modo que não sei a que estevas e maias recorrer mais. (Note que uso uma flora literária que vai desde o Romantismo até ao copo de vinho, exuberante, do Douro.)
(…) Quanto a isso, já sabe o que o espera. Não tenha ideias de mais publicações minhas nas loucuras virtuais. Não sou criatura de papel nem filho de ficções outras! O esquecimento é a melhor literatura  para quem nunca aspirou a nada que não fosse a viagem e a longa e saborosa solidão de tardes numa qualquer varanda de um hotel europeu e cosmopolita.
Em Nicosia tive revelações literárias que só me sucedem quando estou viajando e escrevinhando por aí. Olhe, essa é uma boa definição para a minha mão que escreve: um escrevedor. E sabe porquê? É que escrevedor é aquele que escreve mal, que escreve sem valor artístico e literário, sendo mais um a juntar à pacotilha literateira que por aí abunda.
Ironicamente, sou escrevedor. Na realidade, aquela da carne e do sangue, sou um flâneur.
E explico-lhe o porquê de me considerar um flâneur, meu querido jovem do Romantismo Redentor.
(…)
Bom, já tem aqui material para uma próxima publicação. Mas aviso-o que só revelará essa longa divagação quando tiver em mãos nova impressão dos impossíveis Cadernos de Nicosia.
Quanto à música, imagino-o a imaginar-me rodeado de Wagner e Beethoven e Chopin e Debussy e Ravel e Villa-Lobos e Tchaikovsky. Mas imagina mal! Ando em volta de Bach e de Haydn. Haydn é soberbo, sublime e poderoso! Faz lembrar aquelas catedrais imponentes e infinitas de luz e sombra e retalho e exagero!
Bom, segue a impressão.
Um abraço deste sempre
Seu

Gonçalo V. de Sousa.


Solidão

Na varanda de todos os hotéis largos, grandes, universais, civilizados e cosmopolitas existe um je ne sais quoi de moderno e de inconstante. São os hóspedes que chegam de lugares distantes e exóticos, com panamás claros e luminosos, ou então com casacos grossos e gelados por um fiorde ou por uma tundra desses frios e distantes países-continentes.
E depois é o cheiro dos perfumes das mulheres do Norte, subtis, ebúrneas, solenes, de um encanto tácito e maravilhoso, que contrasta com o moreno marmóreo e ruidoso das deusas do Sul, que baloiçam ao som do ritmo das sensações e da vida. Enquanto as do Norte, pálidas e selectas, folheiam revistas de respeito, as do Sul, barafustam por isto e por aquilo, numa orquestração de braços esfuziante.
E tudo isto pode ser observado num confortável sofá enquanto as bebidas quentes ou frias, conforme o momento e a região, são servidas por funcionários sempre exemplares, prestáveis e quase exageradamente lambidos.
Há qualquer coisa de maravilhoso nestes hotéis cosmopolitas e nestas cidades-navio que me fazem querer viajar sempre mais, por mais tempo, e mais longe. São os museus e as catedrais e os cafés e as galerias e as vitrines. Mas o mais maravilhoso na viagem está no perder-se. Sim, no perder-se pelas ruas, pelas avenidas, pelos jardins, pelos cemitérios, pelas estátuas e fontes. Isso sim é viajar. Isso e aquela sensação de conhecer as pessoas momentaneamente, episodicamente, e jamais voltar a ter uma conversa, um gesto, uma palavra. Que delícia essa do momento único, irrepetível e para sempre perdido. Tivessem os românticos compreendido esta questão e não seriam necessárias nem Elviras nem Margaridas nem Ofélias nem tantos suicídios carnais e espirituais. Tivesse o homem do século XIX entendido esta tão simples e singela verdade e as alcovas estariam vazias e as gares e os paquetes cheios. A viagem teria sido o motivo de interesse, e não o amor pecaminoso, adúltero. E não o romance psicológico e de costumes.
Mas este é outro século, o da viagem e do momento. E da solidão.
A maravilha do poliglotismo é uma explosão de sensações. As línguas e as culturas de todo o mundo já não se encontram todas num só país, encontram-se todas numa sala de hotel, num restaurante, numa rua, e isso é a civilização.
Mas nada se compara ao delicioso momento em que nos levantamos do sofá onde silenciosa e confortavelmente observamos o mundo encaixilhado numa sala, vestimos o nosso tweed, terminamos a nossa bebida, de preferência de malte, e saímos pela porta principal, gloriosos, imaculados, elegantes e sós.
Aqui se resume toda a fórmula do homem viajado do nosso tempo. Aquele que triunfa no meio da multidão, ainda que sempre sozinho. Aquele que espanta pela sua cultura e pela sua excentricidade, ainda que solitário. Aquele que vagueia pelos quartos e varandas e terraços de todos os hotéis do mundo e continua sempre o mesmo. Rodeado de multidões, é a solidão a melhor companhia de quem tem a existência como um cais de embarque para todos os mundos e todos os mitos.





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