quinta-feira, 14 de maio de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações


José,

Eis-me de novo por terras portuguesas, após mais uma viagem por esta velha Europa.
Noto que temos andando desencontrados no silêncio, pois nem eu lhe escrevi nem o jovem romântico das líquidas sensações me escreveu. Menos mal!, diria o Eça.
Escrevo-lhe agora, entregando-lhe no regaço mais um poema (bastas vezes escrito e reescrito nesse Paris de neve e de noite, sempre pensando noutras latitudes, noutros olhos).
A verdade é que tenho perdido vontade de escrever, meu caro. A cada dia que passa é olímpica a vontade de me entregar a deambulações sem nexo ou propósito, isto se perder-me pelas ruas de Paris contar como propósito.
Hei-de enviar-lhe uma impressão do eterno e impublicável Cadernos de Nicosia sobre isso mesmo. Quanto à noção de impublicável, assim continuará, pois, como já lhe disse bastas vezes, não vale a pena escrever para os outros, escrever para que os outros leiam. Tudo passa. Devemos ser somente de nós e darmo-nos aos outros na medida que a ficção o permita. Mas isto são outros assuntos que contradizem muito do que pensei há largos, distantes e jovens anos, tempos esse de cabelo liso e castanho e vivo. Tempo de possibilidades e não de deambulações ao acaso, filhas de infinitos silêncios.
Lembrei-me do que meu primo Jobim me disse uma vez, a propósito de uma conversa que tivera com António Cândido “Cada mulher que eu não tive foi uma canção que fiz”. Penso que é isso o que se passa connosco.
Comigo é semelhante, mas diferente. Cada vida que não tive foi um silêncio que criei.
Voltei a Wagner, deixando por ora as luminosas cores desse meu Brasil.
Regressei aos românticos e brumosos torreões dos castelos bávaros.
Mas isso será para outro momento.
Cheguei há dois dias de Paris (…), depois fui a (…) daí o silêncio. Espero que tenha publicado os dois poemas como lhe pedi. Sei que o fez. Se o não fez não tem mal, os deuses são bondosos porque não existem.
Trouxe-lhe mais vinho e macarons. Conto consigo para a próxima semana (…). Lembre-se do que havíamos combinado.
Sei que o acordo ortográfico voltou a criar zum zum . Sabe o que lhe digo: serei sempre contra essae acordo sem nexo, onde a língua se perde em cadernos legislativos quando se devia encontrar nos cantares e nos dançares dos portugais e brasis e angolas e guinés que há por este mundo. Cada pessoa é uma pátria. Mas nenhuma pátria é uma pessoa. Sei que não é contra o acordo. Sei bem a sua posição, jovem das futuristas aversões ao comodismo e ao estabelecido!
Respeito-o. Mas não o compreendo! Nem quero! Culpe o Voltaire, menino, não a mim.
Ainda há-de vir o tempo em que os verbos e os meses do ano serão catalogados pela bolsa! Blague!
Leia este poema e faça dele o que quiser, meu querido José.
Efraim ficou, ainda mais uns dias, por Paris. Foi uma boa decisão. Preciso de um tempo, vagaroso e líquido, sozinho, para poder pensar bem (…). Tal como lhe havia dito, lembra-se?
Bom, a missiva vai longa, mas a minha vontade de falar consigo (não a vontade de escrever, essa seca-se a todo o instante) cresce e galopa e dança como se Ida Rubinstein fosse uma barata bailarina de cabaré de terceira classe.
Escreva-me, visite-me, fale-me. Não me responda com silêncio, jovem frenético que um dia saberá amar as grandes paisagens do silêncio.
O poema, coitado, será ofuscado por todo este meu palavreado, e eu não sei se tudo isto será o efeito da nossa amizade ou do vinho que me abre os poros para as sensações destes luares de Maio, tão seráficos e bondosos (e em Coimbra tão pesados e borrados de cerveja e de gritinhos de meninas de boas famílias que vão sendo apalpadas por mãos ciosas de filhinhos de doutores que dão consultas nos HUC e nos Covões e têm consultório privado em Celas!)
Na próxima viagem será meu convidado! Iremos conhecer a Turquia, país mítico e a Oriente de um Oriente de toda a Literatura e de toda a Arte. Mas antes de irmos, é Wagner a desenhar os seus tronos de cetim e de granito, é Wagner surgindo das neblinas dos lagos e dos bosques.
Ainda hei-de aprender alemão, caro José.
Hei-de aprender com a (…) a dizer Träume, e assim encontra-lá-ei novamente, mais uma vez, naquela redentora manhã de 15 de Março de 1968.

TRÄUME.

Por agora, brindo ao seu silêncio e à minha solidão.
Um abraço longo, e apertado, e talvez agradecido,
Do

Seu

Gonçalo



"Sonhos de luar"


Que esta língua de mar e de céu
Inunde a riqueza deste país continente,
Deste Brasil que é um mosaico.
Um Brasil de Brasis.

Esta doçura líquida e azul
Que se perde no som das araras
Voando com os seus sonhos coloridos
Que são florestas e morros e luares.

E as noites sussurrando canções de amor e de amor
Lembrando aqueles tempos de Ipanema
Ao som das ondas que não sabiam
Guardar segredos de cetim e de céu,
Do céu que era azul porque azuis são os sonhos
Das noites no Rio de Janeiro.

E assim viveremos os dois
Sem tristeza que não seja Amor.
A nossa rua poderia ser aquela cento e sete
Onde o piano e a viola e os habanos e o whisky
E a amizade e o amor dançavam
Valsas sentimentais de cuíca e de tambor.

“É preciso inventar de novo o amor”.





Paris, 24 de Dezembro de 2011.




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