Dança, de Ana Cristina Dias
A voar.
Porque sem
chão.
A cair.
E chão
nenhum.
Foi assim
que me senti.
Acho que
foi assim.
Foi um
sentir tão grande.
Tão vazio.
Devastador.
Demolidor.
Todas as palavras
possíveis com dor.
Tu fazias-me voar mas não me deixavas cair.
Levantavas-me.
Levavas-me nos teus braços.
Como se eu um
balão, um avião, os meus pés longe do chão.
O meu
coração a bater acelerado.
Parecia
fácil chegar às nuvens.
Uma vez, tenho
a certeza, consegui chegar, tocar numa nuvem, com a ponta do meu pé esquerdo, com
o dedo gordo do meu pé esquerdo.
Uma nuvem
baixa e fofa, tão fofa que nada senti.
A voar.
A voar como
um pássaro dentro das tuas mãos, dos teus braços copa de árvore cheios de
ninhos.
Havia
sempre pássaros a cantar nos nossos passeios.
Todos os
dias dávamos um passeio na floresta.
Por tua
causa, tu o causador, uma palavra sem dor, tive uma floresta encantada.
Tu, com as
tuas histórias, o encantador, outra palavra sem dor.
Tu a flauta,
eu a serpente, a dançar encantada.
Foi contigo
que aprendi a dançar.
Foste o
primeiro homem com quem dancei. Os meus pés sobre os teus pés. Os meus pés
longe do chão, eu de braços esticados presa aos teus ombros, como uma peça de
roupa a secar no estendal.
Foste o
primeiro homem em tantas coisas.
Eu pela tua
mão, deslumbrada.
Eu gostava
do Outono, perguntavas e eu respondia.
A estação
de todas as cores, das folhas, do vento, dos cogumelos.
Contigo
aprendi a distinguir os venenosos dos comestíveis.
Na vida
temos de saber distinguir o bom do mau, dizias.
Tu
preferias o Verão, por causa do calor, alívio das dores que já então te tolhiam
os ossos, do barulho das cigarras, do cheiro raro a terra molhada e das amoras.
E não sei dizer
se gostavas mais de amoras se da sua ausência.
Tu a
suspirar por amoras, o teu fruto preferido, dizias.
Apanhavas
amoras e eu manchava as mãos e o vestido, e piscavas-me um olho como que a
dizer, não te preocupes e eu não me preocupava, porque ao ver as nódoas no
vestido a mãe ralhava só contigo, num ralhar cheio de riso.
Depois
o Inverno e a abstinência dos passeios pela floresta nos dias de chuva.
Os
dois abandonados dentro de casa como pássaros dentro de uma gaiola.
Brincavas
comigo na sala, no tapete verde da sala, mas não era a mesma coisa.
A
mãe enquanto fazia o jantar olhava para nós com pena.
Chovia
muito no Inverno.
Talvez
não chovesse assim tanto, às vezes as memórias são tão diferentes de tudo o que
aconteceu.
E
eu já não me lembro de tudo, passaram muitas estações, também cresci, envelheci.
Envelhece-se
rápido, como se com pressa.
Só
na infância o tempo sobra ao ponto de parecer inútil, só na infância essa pressa
me parece agora legítima dado o credível alibi da inocência.
Entretanto
tu envelheceste mais, envelheceste ao ponto de precisares de mim.
Lembro-me
da última vez que te levei a passear pela floresta.
Tu
pela minha mão, e não pela minha mão, eu a empurrar-te numa cadeira de rodas.
A
cadeira a rodar com dificuldade pelo chão de terra, a empancar na erva seca e
nas pedras avulsas.
Um
passeio pequeno porém verde.
Fiz-te
uma surpresa, levei uma garrafa de vinho, o teu preferido.
Estavas
proibido de beber.
Enquanto
bebias, saboreavas, o teu olhar brilhava como o de uma criança em delito fora
de flagrante.
Quase
não falámos.
Não
precisávamos de falar.
Ouvimos
os pássaros. Andorinhas, pardais, tentilhões, melros.
Ao
entardecer uma sinfonia perfeita, merecedora de vivas e palmas.
Lembras-te?
Nós não sabíamos que era o nosso último passeio ou talvez soubéssemos porque
nos demorámos.
Esperámos
pelo pôr-do-sol, pelo que o fim, a anoitecer ainda mais triste. Um lusco-fusco sem
luz, sem pássaros, ainda sem mochos e corujas, que aves que são respeitam o
horário das galinhas, a floresta desencantada.
O
horário das galinhas como se o meridiano de Greenwich, disseste a tentar a
graça, mas nenhum dos dois conseguiu rir.
Lembras-te?
Como
te podes lembrar se já não estás aqui.
E
como é possível não estares onde sempre estiveste?
No
portão da escola à minha espera, ao meu lado a passear pela floresta, à espera
do meu sono depois de apagar a luz do candeeiro na mesinha de cabeceira e
depois, quase magia, sempre ao meu lado quando acordava, porque todos os dias,
eram os teus olhos a luz primeira dos meus dias.
Raquel Serejo Martins
Raquel Serejo Martins
Este
texto, esta small SONG, teve como ponto de partida o quadro supra, trabalho da
pintora Ana Cristina Dias.
Mais
trabalhos em: http://eu-e-a-pintura.blogspot.pt/.
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