quarta-feira, 13 de maio de 2015

A Voar


Dança, de Ana Cristina Dias

A voar.
Porque sem chão.
A cair.
E chão nenhum.
Foi assim que me senti.
Acho que foi assim.
Foi um sentir tão grande.
Tão vazio.
Devastador.
Demolidor.
Todas as palavras possíveis com dor.
Tu fazias-me voar mas não me deixavas cair.     
Levantavas-me. Levavas-me nos teus braços.
Como se eu um balão, um avião, os meus pés longe do chão.
O meu coração a bater acelerado.
Parecia fácil chegar às nuvens.
Uma vez, tenho a certeza, consegui chegar, tocar numa nuvem, com a ponta do meu pé esquerdo, com o dedo gordo do meu pé esquerdo.
Uma nuvem baixa e fofa, tão fofa que nada senti.
A voar.
A voar como um pássaro dentro das tuas mãos, dos teus braços copa de árvore cheios de ninhos.
Havia sempre pássaros a cantar nos nossos passeios.
Todos os dias dávamos um passeio na floresta.
Por tua causa, tu o causador, uma palavra sem dor, tive uma floresta encantada.
Tu, com as tuas histórias, o encantador, outra palavra sem dor.
Tu a flauta, eu a serpente, a dançar encantada.
Foi contigo que aprendi a dançar.
Foste o primeiro homem com quem dancei. Os meus pés sobre os teus pés. Os meus pés longe do chão, eu de braços esticados presa aos teus ombros, como uma peça de roupa a secar no estendal.
Foste o primeiro homem em tantas coisas.
Eu pela tua mão, deslumbrada.
Eu gostava do Outono, perguntavas e eu respondia.
A estação de todas as cores, das folhas, do vento, dos cogumelos.
Contigo aprendi a distinguir os venenosos dos comestíveis.
Na vida temos de saber distinguir o bom do mau, dizias.
Tu preferias o Verão, por causa do calor, alívio das dores que já então te tolhiam os ossos, do barulho das cigarras, do cheiro raro a terra molhada e das amoras.
E não sei dizer se gostavas mais de amoras se da sua ausência.
Tu a suspirar por amoras, o teu fruto preferido, dizias.
Apanhavas amoras e eu manchava as mãos e o vestido, e piscavas-me um olho como que a dizer, não te preocupes e eu não me preocupava, porque ao ver as nódoas no vestido a mãe ralhava só contigo, num ralhar cheio de riso.
Depois o Inverno e a abstinência dos passeios pela floresta nos dias de chuva.
Os dois abandonados dentro de casa como pássaros dentro de uma gaiola.
Brincavas comigo na sala, no tapete verde da sala, mas não era a mesma coisa.
A mãe enquanto fazia o jantar olhava para nós com pena.
Chovia muito no Inverno.
Talvez não chovesse assim tanto, às vezes as memórias são tão diferentes de tudo o que aconteceu.
E eu já não me lembro de tudo, passaram muitas estações, também cresci, envelheci.
Envelhece-se rápido, como se com pressa.
Só na infância o tempo sobra ao ponto de parecer inútil, só na infância essa pressa me parece agora legítima dado o credível alibi da inocência.
Entretanto tu envelheceste mais, envelheceste ao ponto de precisares de mim.
Lembro-me da última vez que te levei a passear pela floresta.
Tu pela minha mão, e não pela minha mão, eu a empurrar-te numa cadeira de rodas.
A cadeira a rodar com dificuldade pelo chão de terra, a empancar na erva seca e nas pedras avulsas.
Um passeio pequeno porém verde.
Fiz-te uma surpresa, levei uma garrafa de vinho, o teu preferido.
Estavas proibido de beber.
Enquanto bebias, saboreavas, o teu olhar brilhava como o de uma criança em delito fora de flagrante.
Quase não falámos.
Não precisávamos de falar.
Ouvimos os pássaros. Andorinhas, pardais, tentilhões, melros.
Ao entardecer uma sinfonia perfeita, merecedora de vivas e palmas.
Lembras-te? Nós não sabíamos que era o nosso último passeio ou talvez soubéssemos porque nos demorámos.
Esperámos pelo pôr-do-sol, pelo que o fim, a anoitecer ainda mais triste. Um lusco-fusco sem luz, sem pássaros, ainda sem mochos e corujas, que aves que são respeitam o horário das galinhas, a floresta desencantada.
O horário das galinhas como se o meridiano de Greenwich, disseste a tentar a graça, mas nenhum dos dois conseguiu rir.
Lembras-te?
Como te podes lembrar se já não estás aqui.
E como é possível não estares onde sempre estiveste?
No portão da escola à minha espera, ao meu lado a passear pela floresta, à espera do meu sono depois de apagar a luz do candeeiro na mesinha de cabeceira e depois, quase magia, sempre ao meu lado quando acordava, porque todos os dias, eram os teus olhos a luz primeira dos meus dias.


Raquel Serejo Martins

Este texto, esta small SONG, teve como ponto de partida o quadro supra, trabalho da pintora Ana Cristina Dias.
Mais trabalhos em: http://eu-e-a-pintura.blogspot.pt/.

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