terça-feira, 7 de abril de 2015

Teoria dos Limites, as primeiras linhas

O que não pode ser dito

Inefável é o que não pode ser dito
 
Jorge de Sena, Os paraísos artificiais
 
«Não não, disse, e continuou a andar, seguindo os homens que levavam o caixão aos ombros, por entre jazigos com inscrições de amor e saudade eternos e campas com flores murchas e ar abandonado, e apertou-lhes ainda mais as mãos, a agradecer o cuidado e a ternura. Sabia que teria de chegar ao fim, ouvir o terrível barulho da terra a cair sobre o caixão, deixar-se abraçar por muitas daquelas pessoas, escutar as palavras de consolo, fazer o caminho de regresso ao carro, ser levada para a casa vazia, perceber que estava sozinha. Era a última tarefa, pensou, um exercício final, uma operação de álgebra, como uma sucessão matemática, a seguir ao 2 vem o 4 e depois o 6 e o 8, enquanto conseguisse continuar sabia que se aguentaria, por isso tinha recusado por duas vezes a sugestão das primas para sair do cemitério, e era-lhe quase grato o abandono do corpo que elas amparavam, instando-o a prosseguir por entre áleas de ciprestes e liquidâmbares em que os olhos não se demoravam como deveriam, recortes verdes e avermelhados num céu azul que contrastava com as cores escuras das roupas e a tristeza dos rostos. Não, repetiu, e a terceira negativa em tão curto espaço de tempo pareceu-lhe excessiva, mas nenhuma das primas mostrou surpresa, apesar de saberem as três que essa era uma palavra de uso pouco habitual nela, sempre mais inclinada a anuir ou a aceitar em silêncio, e continuaram a andar atrás dos homens que transportavam o caixão aos ombros, num gesto último de apreço e respeito. De olhos baixos, o que via era o fim das calças e os sapatos, quatro pares pretos e dois castanhos, de vez em quando o vislumbre de uma meia cujo branco achou obsceno, e imediatamente o associou ao jovem poeta em ascensão fulgurante que fizera absoluta questão de entrar no grupo dos seis homens, o que causara comentários em surdina pouco simpáticos que ele devia ter ouvido e ignorara, postando-se entre dois escritores mais consagrados, calculando que ninguém ousaria dizer-lhe para se afastar e conseguindo assim a fotografia na primeira página dos jornais do dia seguinte. Vaidade das vaidades, feira das vaidades, poderia ser o título da notícia, e a ideia fê-la pensar no Pai, porque era o tipo de frase que Ele diria, e espantou-se que nenhum sentimento se associasse à ideia, nem pena nem alívio, nada, mesmo nada, a não ser que o abandono do corpo fosse consequência da sensação de orfandade que talvez ainda não fosse evidente mas que poderia chegar em breve.»


*In Teoria dos Limites, Maria Manuel Viana
edição teodolito, capa João Vilhena

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