sábado, 18 de abril de 2015

François Maspero, por Ana Sousa Dias

E se eles estão todos na conversa sabe-se lá onde?

por ANA SOUSA DIAS


É sobretudo útil amar os vivos. Os verdadeiros. Isto disse François Maspero, editor, escritor, tradutor, livreiro, um nome que me faz carregar uma culpa alheia quando ele se viu obrigado a fechar a livraria La Joie de Lire, em Paris. Era um lugar mítico, onde se podia encontrar livros que não estavam à venda na maior parte das lojas. Na minha memória, era o equivalente, em Paris, à Barata, na Avenida de Roma, ainda pequenina e cheia de segredos, ou à Moraes, no Chiado, ou à 111 de Manuel de Brito, no Campo Grande. Abrira as portas em 1957, fechou-as em 1976, numa falência a que foi dada uma explicação: havia tantos roubos de livros que se tornou insustentável. O livreiro sabia e não denunciou ninguém à polícia nem criou um sistema de segurança. Como se roubar livros fosse justificável, porque existem para ser lidos principalmente por quem não tem dinheiro para os comprar.

Era aliás um desporto recorrente, lá como cá, quase um feito memorável, revolucionário, roubar um livro. Qualquer das três livrarias lisboetas que mencionei e muitas outras sentiram isso. Não havia então alarmes magnéticos, mas havia proibições e muitos livros circulavam clandestinamente, de mão em mão, por pura confiança. O mesmo aconteceu com obras publicadas nos anos 60 por Maspero, no tempo do gaullismo, com circuitos alternativos que passavam por Itália e pela Suíça. Experimentou a censura e a liberdade, publicou 1350 livros e revistas, e mesmo quando deixou a editora continuou a escrever e a traduzir. Dava duas razões para se ter tornado editor: a guerra e a desilusão soviética. As guerras coloniais francesas - Indochina, Argélia e as outras colónias africanas. As guerras de libertação, as revoluções, a literatura, as teorias marxistas e depois trotskistas, todo esse percurso emerge da lista de títulos e de autores em que se incluem Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade.

Maspero morreu no sábado, aos 83 anos, e o Le Monde contou a história de uma vida feita de livros, uma vida a fazer livros. Ele próprio dizia que nascera, de facto, aos 12 anos e meio, e que vira olhos nos olhos o parteiro - o gestapo que lhe levou os pais para campos de concentração. Henri morreu meses depois em Buchenwald, a mãe sobreviveu em Ruvensbruck.

A morte do livreiro foi um prenúncio do que aconteceu dois dias depois. Günther Grass e Eduardo Galeano juntaram-se a ele, num festival de letras e de ideias que talvez esteja a acontecer em algum lugar onde Herberto Helder os esperava, desassossegado por Manoel de Oliveira insistindo em filmar tudo e por Tolentino de Nóbrega a fazer a reportagem. Que mês de abril estamos a ter.
É sobretudo útil amar os vivos. Os verdadeiros. Os nossos mortos por vezes são os verdadeiros vivos.

*in: http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4510964

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