Teimo ser tua Maria mesmo que eu não
carregue com esta sina o nome cravado na certidão. Diz lá outra coisa,
não importa, teimo ser tua Maria, um ventre amplo onde se multiplicam
ilusões açucaradas para multidões ensandecidas.
Deito-me na cama e do meu umbigo brota uma
imensa árvore. Ganha céu, jequitibá. Floreia nuvens, ipê. Margeia a
serra, manacá. A copa imensa estende abertos braços que acolhem teu
regresso, figueira. Encorpadas de satisfação chovem folhas, sibipiruna.
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desenho em nanquim – José Elffer |
A primeira mensagem, as linhas formais, o
vocabulário rebuscado que derramava uma timidez sedutora, eu respondi
sem saber. Mas, confesso, senti vibrar algo inusitado ali, naquele fraco
instante em que não éramos mais do que bilhetes vagos e menos do que os
velhos carimbos postais. Faltava um pedaço, mas havia todo o resto.
Teimo ser tua Maria mesmo que as linhas tenham se desintegrado antes de constituir tua caligrafia. Antes do sim, antes do não.
Paira no teto do quarto uma teia de aranha
cuja trama fina é indecifrável. O pequeno inseto que ali ficou
atrelado, tramas de linhas, esperou ser devorado por uma aranha imensa,
linda de tão feroz; mas a aranha nunca veio ter com ele o encontro
prometido. O inseto morreu desgostoso daquela insignificância. Ficou
chorando dias e dias ali no canto da parede e das lágrimas dele brotaram
manchinhas escuras de bolor. Um dia veio o vento, a chuva, o aguaceiro e
nunca mais se ouviu falar deles.
Respondi para que tuas aflições fossem
diluídas nas minhas. Entreguei uma alma antiga, daquelas empoeiradas que
não temem as vicissitudes da vida (que é efêmera, sobretudo).
Cresci num terreiro de chão batido e bem
varrido por vassourinhas de palha de milho. No canto norte uma fartura
de arruda, no canto sul capim cidreira. Despiu-se em mim fagulha de
fogueira, atabaques e preces silenciosas. Os profetas, os deuses, os
bárbaros, os pagãos (principalmente os pagãos), todos eles foram me
habitar.
É preciso saber agradar para fazer um bom
cozido. Saber da colheita, saber do preparo, saber do sabor. Saber da
honestidade que a simplicidade nos impõe. Inhame, aipim, maxixe,
couve-manteiga, moranga e batata doce e baroa.
Teimei ser tua Maria porque eu sabia que
poderia ser tua simplesmente e eu saberia a hora de cada pequeno broto,
cada raiz, as folhas verdes espessas que podem tudo suportar. As
saudades se escondem na panela de ferro, cozinham em fogo brando.
Sonhei fadas prenhas, elefantes brancos e
pequenos príncipes indianos enrolados em finas sedas. Camaleões se
embrenhavam nos travesseiros, faziam amor entre as plumas. Ouvi chiados
de fêmeas em gozo. Vi libélulas arrasarem voo em duo. Toquei em mim uma
valsa elegante, estendi as cordas do violão e degustei lembranças
eréteis.
Uivei pedindo abrigo à Lua tantas eram as
nuances da minha ode onírica, mas o Tempo veio – com a faca nos dentes e
os olhos flamejantes de labaredas gélidas azuis – e sem dizer nada que
me consolasse, ceifou minha alegria.
Emaranhei-me nas teias das palavras
gravadas no espaço e ali morri sem nunca ter sido por tua gana devorada.
Morri no desgosto da semelhança que era avessa. Morri no fel que não se
conhece das travessuras adolescentes. Extinguiram-se em mim tuas
promessas vazias.
Insisti ser tua Maria na nuvem grossa de areia que turvava minhas retinas.
Caiu o sereno, passou o vento, as calhas
cantaram. A rua se espelhou úmida nas miracemas vulgares que hoje mais
parecem brilhantes únicos, verdadeiros.
Penélope Martins
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