domingo, 19 de abril de 2015

Cabeça-de-vento


Cabeça de Vento, de ANA CRISTINA DIAS (detalhe)

A primeira vez que lhe chamaram cabeça de vento estava na escola primária.
Talvez mesmo na primeira classe.
Os meninos de bata amarela.
Canários em linha, como molas de roupa sem roupa não numa corda mas dentro de uma gaiola.
Guarda uma memória amarela.
Os meninos sentados, plantados nas carteiras, um campo de girassóis de olhos encandeados por um sol negro de ardósia, duas dúzias de olhos cegos de espanto por perceber que os estranhos desenhos eram palavras e que as palavras eram feitas de letras, uma matrioska, parecia marosca.
P-a-t-o.
G-a-t-o.
Parecia estranho, era estranho, porque para ela, um gato, sete vidas, quatro patas, um rabo, muitos bigodes e dois olhos amarelos como os berlindes que guardava no bolso.
Olhava para o enorme quadro negro e gato nenhum, nem escondido, denunciado por um rabo de fora.
Ouvia a explicação na voz de locutor de rádio sem música do professor e perdia-se, fugia, para lá das enormes janelas, tão grandes que a deixavam ver a cidade inteira.
Mentira, sabe que é feio mentir, se a cidade uma laranja, uma tangerina porque a cidade pequena, via apenas meia tangerina, o que já é muito ver para uma janela.
E de olhos na janela, para lá do vidro, perdia-se à procura do gato, procurava ao sol à soleira das portas, à porta da peixaria, camuflado entre os cortinados de uma janela, entre dois vasos com sardinheiras, a atravessar a estrada dentro ou fora da passadeira, pelas árvores, pelos muros, pelos telhados.
Chamavam-lhe cabeça-de-vento e diziam que fazia muitas avarias.
Ou tinha muitas ideias e nem todas corriam bem.
Convém ser boa a correr.
Não era o seu caso. Corria, tropeçava, caía, como se uma sequência com lógica.
Os joelhos pele de crocodilo, crosta sobre a crosta da primeira ferida.
E a correr, entre a lebre a tartaruga, ela um peixe.
Dentro de água ninguém a apanha, ninguém lhe ganha.
Ia ao fundo como se fosse à lua.
Para mais na cidade um rio, nos seus Verões um rio.
Quando ia ao fundo deixava todos de olhos pendentes e respiração suspensa, como a sua debaixo de água, até ao seu regresso, hesitantes quanto a mergulhar também, no limite do susto, até que emergia ofegante, sorridente, e sempre com uma pedra na mão, prova oval e concreta da sua audácia.
Tinha no quarto um frasco de vidro onde em vez de bolachas ou biscoitos guardava pedras do fundo do rio. A avó sabia que tantas as pedras como as vezes que ficou com o coração nas mãos por saber como o rio é matreiro com os invasores.
Porém ela um peixe.
E apesar das pedras, a avó nunca a chamou cabeça-de-vento, talvez soubesse que ela um peixe, inconsciência, audácia, guelras e barbatanas.
De olhos tristes com um sorriso perdoava-lhe todas as asneiras.
Mesmo quando os berlindes lhe fugiram do bolso, como se tivessem pezinhos.
Fugiram, avó! – Um eufemismo.
Fugiram-me do bolso e sem querer fizeram cair o professor no corredor da escola.
Mau humor fracturado em dois sítios, fato de fazenda de três peças e braço esquerdo engessado ao peito, passou a ser conhecido entre os girassóis como o pau-de-giz.
Tem tempo para a tristeza a menina. – Ouvia-se a avó dizer como se de uma ordem se tratasse, ao tempo, à tristeza e a todos os que queriam corrigir a menina.
Pelo que em casa da avó um mundo diferente, o tempo sem sobressaltos e o seu cocuruto em sossego.
Um mundo pequeno. A avó não tinha muito. Uma casa. Um gato. Uma figueira e na figueira quando figos pássaros.
A avó não tinha muito mas tinha muitas histórias para contar.
Conta outra vez a da menina que tinha um tapete voador.
E a avó contava, a mesma história, sempre de forma diferente, como se não atinasse com a história, pelo que sempre uma surpresa, um espanto.
Era uma vez um tapete que de tanto voar, voou mais do que avião, tanto como foguetão, chegou à lua, fez da menina astronauta.
A avó nunca andou de avião.
A avó só conhece os aviões de os ver passar no céu lá longe, pequenos como pardais, lá longe, na lentidão dos caracóis deixando um rabo de fumo.
A avó nunca viu foguetões, nem mesmo na televisão, que serve para as notícias e não mais, sabe sem saber bem o que são, imagina-os como foguetes gigantes, velozes e barulhentos como os que lançam na festa de Nossa Senhora da Assunção, grandes como camionetas, capazes de levar gente dentro, capazes de aterrar na lua, pelo menos quando gorda e cheia, apesar de tudo somado lhe parecer fraca brincadeira, porque fraco passeio para piqueniques.
Porém a menina gosta de ir à lua.
Foi a primeira astronauta da turma.
Pelo que a avó, se o avô a dormir a sesta, ia ao bengaleiro buscar a boina e o chapéu de levar à missa ao Domingo, dois capacetes, enfiava a boina na cabeça da neta até às orelhas, que assim devidamente protegida, 10-8-7-4 começa de imediato a contagem decrescente, contava ao contrário sem ainda bem saber contar, estado de euforia uma única vez interrompido, não para abortar a missão lunar, nem impedir a humanidade de dar mais um salto, mas por se lembrar, em respeito pelo original, que lhes faltava uma bandeira, a avó sabia que era imprescindível levar uma bandeira.
Temos de fazer uma bandeira. – disse antes de descolar o foguetão.
Tenho uma velha almofada solteira, cortamos uma galho seco à figueira.
O que é uma bandeira? – Pergunta a menina ansiosa perante a nova palavra e a novidade.
Uma bandeira! Como te posso explicar, é como uma fotografia. Estás a ver a fotografia do avô que guardo na caixa de costura, tem o bigode do teu avô, os óculos do teu avô, o chapéu do teu avô, o sorriso do teu avô, os seus vinte anos, o bolo de chocolate de que tanto gostava, o dia em que me pediu em casamento, o dia em que nasceu a tua mãe, o dia em que tu nasceste, é um quadradinho de papel que tem dentro todas as histórias de um país e os sonhos também.
Então a minha bandeira tem de ter uma bicicleta! O pai disse que se eu me portasse bem me oferecia uma bicicleta no meu dia de anos.

Cabeça de Vento, de ANA CRISTINA DIAS, Pintura em Livro

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