Meu querido José
Façamos uma pausa no meu testamento que se quer definitivo e sonante, e deixemos a poesia entrar em doses largas, líquidas e luminosas.
Pouco mais tenho para lhe dizer. (Sabe que o meu aniversário se aproxima e conto consigo para um jantar íntimo e bem regado, não só dos líquidos de Baco, mas também das teias de Nereida e de Atena e Vénus.)
Este poema foi dos meus mais recentes devaneios cá pelas nossas terras de Portugal.
No entanto, garanto-lhe que na próxima semana teremos uma quinta parte sórdida, picante e bela. Assim foi a minha realidade nos idos de 68, quando nem imaginava que o iria encontrar e escrever-lhe, nos final dos dias dos meus sessenta e oito anos.
Abraço apertado deste seu
Gonçalo
A cidade sou eu para sempre.
O teu aroma atlântico,
O sangue que poderia ter sido meu
E é navegador.
Não de hoje ou de ontem,
De outros tempos fora do tempo.
Lisboa brilha no seu azul dourado
Enquanto o sol ilumina algo que existe
Dentro do silêncio sossegado e solitário.
Esqueço o tempo e a vida,
Esqueço tudo e levo-me pela música
Que escuto algures.
A praça brilha, o céu voa alto
E Deus não existe, por agora.
Tenho-te nos meus braços,
Lisboa que não és e nunca,
Nunca, nunca serás minha.
Mas tenho-te nos meus braços
Como os filhos imaginários e fingidos
Que o menino do largo de S. Carlos
Pensava ter.
Não sou nada.
Não como ele, mas como eu
Que não sou verdadeiramente nada,
E ele era tudo e todos de todas,
Todas as maneiras.
Fama, Eternidade, Glória, para
Quê?, quando tenho Lisboa e
Pessoa nos meus braços de sol,
De muito sol e mar. Tenho o
Vento a embalá-los com carícias
Que são metáforas de criança.
O tempo não existe.
A suave brisa do rio, do Tejo
Que só existe por dentro, talvez,
Das coisas íntimas, talvez, do sonho,
Tranquiliza-me a pacientemente
Impaciente espera das caravelas
Que supus minhas.
Não, nem uma.
Só música, música e a cidade
Que me permite tudo, porque
Neste momento que não existe
É minha.
Conquistas, navegações, descobertas,
Mundos, áfricas ouro,
Canela e alecrim.
Hoje, o sol e Lisboa nos meus braços.
Não minotauros nem dragões. O sol.
Luminosamente grande, inevitável,
Irresistível, impossível.
As pedras da calçada, as escadas
Até à água, a estátua, e o cavalo,
O papel, a caneta, a tinta e as palavras.
Ele passa por mim, apressado, fechado
Sobre a sua inexistência.
Vislumbro-o ao longe como se
Fosse ficção (Há tantos loucos
Mais credíveis que eu).
Volto os olhos para os meus braços,
Lisboa fugiu-me e corre pelas ruelas
E becos com uma fita no cabelo.
Ao seu lado, Fernando Pessoa dá-lhe
A mão e sorri-lhe como se o céu
Fosse uma realidade, como se
Lisboa fosse dele para sempre.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2013, em pleno Terreiro do Paço
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