terça-feira, 31 de março de 2015

É do borogodó: era uma vez,

era uma vez,

 

“A primeira força de uma história é, evidentemente, nos transportar em algumas palavras a um outro mundo, àquele onde imaginamos as coisas em vez de vivenciá-las, um mundo no qual dominamos o espaço e o tempo, onde colocamos personagens impossíveis em movimento, onde povoamos outros planetas à nossa vontade, onde insinuamos criaturas sobre a relva das lagoas, entre as raízes dos velhos carvalhos, onde salsichas pendem das árvores, onde riachos sobem em direção às suas nascentes, onde pássaros tagarelas arrebatam e enlevam crianças, onde defuntos inquietos voltam em silêncio para reparar algum esquecimento — um mundo sem limites e sem regras, no qual, à nossa vontade, organizamos os reencontros, os combates, as paixões, as surpresas.
Antes de tudo, o narrador é aquele que vem de outro lugar, que reúne na praça de uma cidade os que jamais sairão dela, e que lhes faz ver outros mundos, outras luas, outros terrores, outros rostos. Ele é o mascate das metamorfoses. É aquele que capta a atenção porque traz outra coisa. É um outro olho e uma outra voz.
Nesse sentido, é por meio do “era uma vez” que a ultrapassagem do mundo — de outra maneira diz a metafísica — é introduzida na infância de cada indivíduo, e talvez também naquela dos povos, a ponto de muitas vezes verrumar ali uma raiz tão forte que consideramos as nossas imaginações humanas, toda a nossa vida, como uma realidade sem discussão. Depois do assombro e do arrebatamento, a história que nos foi contada permanece como a própria base das nossas crenças, da qual conhecemos a força cega.”

– Jean-Claude Carrière –

* com tradução de Cordelia Magalhães, no prefácio para “Contos Filosóficos do Mundo Inteiro”
* escolhido por Penélope Martins, nossa ponte para o Brasil

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