Meu querido José
Desculpe-me escrever-lhe a horas um pouco nocturnas, mas outros assuntos se impuseram, de saúde e bem-estar, e como sabe, jovem frenético, romântico e sonhador, quanto a isso nada há a fazer que não seja obedecer, como monge beneditino ou franciscano que se recolhe ao dever teológico e natural.
Segue uma terceira parte tíbia, pálida e breve, por vários motivos. O primeiro, é que quero propositadamente que assim seja a terceira parte, não só por aspectos simbólicos e cabalísticos, pois o número três é tão profundo que assusta; em segundo lugar, escrevi já a horas tardias e suspeito que o meu querido jovem voador das coisas estéticas transcreva ainda hoje estas palavras tão azedas e sombrias; e em terceiro lugar, não poderia continuar com essa escrita tão romanticamente desenvolta, aliás, uma escrita que jamais foi a minha! Que os deuses me livrem de poder continuar a escrever assim!
Pois bem, leia, pense e viva!
Um forte e amigo abraço do
Seu
Gonçalo Viana de Sousa
E a dança que te envolvia nos seus
braços diáfanos e de um azulado distante e inimaginável. O teu vestido que me
acenava com um enlevo calmo e seguro. O teu par tinha toda a sorte do mundo e parecia sabê-lo, ou talvez não, e sorria para ti e tu sorrias para ele e isso
parecia magoar-me de uma dor insensível, tal era a sua intensidade. O Polka Dot azul virando e revirando pelo
teu corpo. (Ou era o teu corpo que se movia dentro do vestido?) O teu par
vestido de forma sóbria e elegante. Os dois dançando ao som daquela música,
imortal e naquele momento tenebrosa, de nome Change Partners, de meu primo Tom Jobim e do senhor Sinatra. Que
poderia fazer eu, perante essa esmagadora realidade que me gritava a pleno
pulmões que os teus braços, os teus olhos, o teu movimento, todo o teu ser se
encontravam aportados num homem que não eu, senhora minha das noites insones?
Lembro-me agora que te observava como um doido, enquanto tu não tinhas
consciência da minha existência que te sorvia, que te maravilhava, que te
idolatrava com olhos sedentos e ingénuos, puros e misteriosos, singelos e
sonhadores. Dir-te-ei o que se passou depois, donna de todas as coisas sensíveis e belas? Não sei, não sei se
valerá o tempo das palavras que se escrevem em noites de insónia e de tempos em
que o tempo parecia não existir. Talvez deva continuar todo este longo e demorado
texto num outro registo mais interessante, árido, directo e cortante, como
devem ser as palavras que se querem para sempre, ou testamentárias. Por agora,
a noite, os teus cabelos, loiros, anelados, maravilhosos. Vem todas as noites. Vem,
senhora das coisas impossíveis que jamais são em vão. Vem, com os teus vestidos
e as tuas danças de flores e tardes de sol e noites de luar. Mas vem agora, vem
neste momento que é o hoje, em que me perco em arcas cheias da poeira do tempo
e do silêncio que foi silvando um fosso quase impossível de preenchermos. Vem,
o resto não interessa. Fim da 3ª parte.
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