sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

EU SÓ SILÊNCIO

Ontem ou melhor há uns dias porque ontem decidi não acordar eu a sair da escola como sempre e a paragem do autocarro cada vez mais perto. Sozinho com a mesma cara fez já dezoito anos e as nuvens em conversa a acompanharem-me a ganga que lhes fugia. Cheguei e enquanto esperava reparei num velho a vir lá do fundo, velho mas não tão velho como os meus velhos, o branco no cabelo enganou-me e já alguma corcunda por isso ele para mim mais velho que na realidade. Vinha com uma bengala, aliás não era uma bengala, não me lembro do nome, aquilo que os invisuais usam para palparem terreno. Seguro do caminho e óculos escuros a darem-lhe certo charme que nunca hei-de ter parou, partilhámos a mesma espera. Quando chegou o autocarro acercou-se da porta e por isso eu já pronto para o ajudar a subir. Não ajudei porque ele tão autónomo, apenas perto porque sei lá, é isso que se deve fazer. Disse-me para entrar e eu só obediência nessa altura. Entrei e esperei que ele subisse, mantive-me ali tão perto, também o motorista no aguardo mas um aguardo diferente do meu. O velho não tão velho assim fora do autocarro, imóvel com ele próprio, dono de tudo. Parecia-me contar os segundos. Nisto uma senhora baixa a caminhar até à porta onde eu ainda a esperar. Que espanto o meu quando também a senhora com aquela espécie de bengala, também a senhora com branco no cabelo e a mesma corcunda, também a senhora invisual. As pessoas dentro do autocarro que entretanto tinham deixado de ser pessoas encostavam-se cada vez mais apertadas e toda a gente a dar-lhe passagem. O tempo tão rápido porque o relógio não certo ali, nenhum relógio afinal e durante aquele bocado vários dias em nascimento. A senhora a aproximar-se da porta e eu todo silêncio, eu a ser só olhos, os meus e os deles. Passou por mim e parou no ar que faz a divisão entre o autocarro e a estrada. Lá fora o homem a esticar o braço que encheu o autocarro e também a senhora a esticar o dela que encheu o mundo e dois braços num só. O motorista sabendo que tudo aquilo certo mas em mim ainda só silêncio. A senhora desceu e o senhor deu-lhe um beijo na cara. Também os óculos se beijaram. Realmente tudo aquilo certo. Os dois de braço dado seguiram caminho e no autocarro o meu silêncio agora de todos.

Gonçalo Naves

Imagem tirada daqui: http://nogueirense.com.br/entrevista-alice-e-luiz-gallani/

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