quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Eu poético: «No princípio»

NO PRINCÍPIO

No princípio era o verbo amar.
E eu e tu sonhávamos com viagens sem destino.
E tu e eu víamos nos sorrisos um do outro
uma mensagem de felicidade futura.
Folheávamos as mesmas histórias dos livros
e sentíamos arrepios nas mesmíssimas cenas dos filmes.
Arrancávamos as flores do prado
e tu construías colares de linha e agulha.
Usavas o teu vestido favorito e corrias monte abaixo, pés descalços.
No rio que ali passava procurávamos os girinos e as rãs.
A água gelada transformava o corpo em rocha,
mas nós não quebrávamos.
Mas nós ganhávamos ainda mais vida.
Mas nós éramos apenas nós
- fiéis crentes no gerúndio prosseguindo.

Ah, no princípio era o verbo acreditar.
E nós sabíamos transformar as lágrimas em forças inquebráveis.
Seguíamos pela rua de mão dada,
mirávamos a ermita e pedíamos em segredo boa sorte.
Acreditávamos que mudar o mundo
era combater silêncios sepulcrais com música,
que a forma de justificar o fim um do outro
era somente a promessa de um encontro marcado no paraíso.

Mas um dia o verbo foi-se transformando
e tudo se conjugou no partir.
Num último sopro, gelada, agarrada a mim,
corria no teu rosto a saudade.
E então esboçaste com esforço um adeus num suspiro.
Chegou o fim, tu e eu fechámos os olhos.
Ali mesmo chorei e tu seguiste para a última morada.

Resta-me recorrer às memórias de todos os nossos princípios verbais.
E continuar de pé, aqui na terra.

Rodrigo Ferrão

Foto: Rodrigo Ferrão

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