sábado, 28 de fevereiro de 2015

Eu poético: «avô»

avô

o avô descia todas as manhãs o caminho de sua casa até ao marco.
fizesse chuva, fizesse frio ou sol.
colhia o correio,
colhia o jornal.

quase sempre de fato e gravata,
o corpo gasto numa vida de trabalho.
numa rajada de vento forte
corria sério risco de levantar voo.

com um abre cartas bem afiado,
ia abrindo a correspondência uma a uma.
logo a seguir as contas.
quando lhe dava para isso, sacava o extrato do telefone,
agarrava a lupa e inclinava-se para a frente,
focando o mais que podia.
começava então a assinalar com um visto todos os números que conhecia
e com uma bola imperfeita destacava os incógnitos.
depois passava um cheque, letra de médico, assinatura estilo eletrocardiograma.
ou então pedia ajuda a um filho ou um neto,
caso estivessem ali à mão.

enquanto o almoço não chegava, abria o comércio do porto.
torto na sua cadeira, prostrado e de lupa,
começava a ler e não mais parava.
um detective à procura de prova,
ia de uma ponta à outra.

terminava o almoço,
geralmente puré e bife picado.
pegava na manta e na almofada,
sentava-se no sofá
e dormia a sesta.
a mão sempre a segurar a cabeça,
os dedos na testa,
o grande anel em destaque.
ali ficava algum tempo,
mastigando o silêncio.

saía para a varanda e pegava nos baralhos.
dois, assim ditava a paciência.
durante anos - dizia - só havia terminado o jogo duas, talvez três vezes.
desde que vim ao mundo... todos os dias o vi no mesmo ritual.
sempre vivi espantado com a insistência e a militância.
sempre admirei a luta incansável contra as improbabilidades.

tinha o dom da simpatia
e da generosidade pura.
ajudou muita gente
e salvou vidas.
acreditou no próximo
e em deus.
sorria
e deixava as pessoas felizes.
tinha uma palavra de consolo
e dicas de sabedoria.
trabalhou muito
e deixou no mundo dez filhos.

fez por ser presente,
nunca ausente.
fez de mim melhor,
ofereceu-me amor.
sempre deu,
nunca exigiu troco.

e é por isso que, apesar da saudade, apesar de ainda escutar a sua voz, apesar de recordar o seu cheiro, apesar de ter vivos os abraços que lhe dava...
eu continuo a olhar para o céu.

é lá que mora a estrela que me guia.

Rodrigo Ferrão

Na foto: o meu avô

3 comentários:

  1. Comoveu-me ! Até porque ´revi-me em algumas passagens !

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  2. Que maravilha de descrição do Tio Vitorino que era tão parecido nós gestos com o tio dele, meu avô.
    Grande abraço

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  3. Muito bonito, mesmo.
    Com que simplicidade percorre o poema a vida do avô. Parabéns.

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