A Crónica de Um suicídio
21.
Em
que momento passamos a questionar o mundo e tudo quanto nele acontece? Quanto
nos acontece?
É
logo quando nascemos, mesmo que não nos lembremos, ou quando sentimos pela
primeira vez o gosto do pão quente na boca
O
gosto do fermento e da farinha?
O gosto
dos gestos de quem o fez?
22.
Em
que momento passamos a existir? E em que momentos passamos a questionar-nos
acerca do nosso fim?
Quando
passa a haver mais promessas na morte do que na vida?
O que
nos faz desejar morrer em detrimento de viver?
Quantas
vezes suporta o nosso mundo partir-se para que deixe de ser possível
restaurá-lo?
23.
A
verdade é que o medo do caos se lhe entranhou de tal modo nos ossos, que passou
a desejar reconstruir toda a ruina, todo o muro caído, toda a casa devoluta,
toda a rua esburacada e feia. Como se fazê-lo, ou pelo menos desejá-lo, fosse
já um meio caminho para ordenar o desordenado, erguer o tombado, dar cor a
todas as ruinas da vida.
As
palavras passaram a ser uma forma de imaginar todas as curas, todas as
possíveis panaceias…
Poemas
são feridas tratadas, dores desconstruídas e sopradas ao vento…
Poemas
são lamentos felizes…
São
infelicidades alegres…
24.
Ou
serão vaidades?
Ou
serão inúteis melopeias?
Que
poema nos salva da dor maior. Do amor perdido. Pela vida?
25.
O que
tem na mão é escuro e frio e ameaçador.
Descobriu-o
na gaveta da mesinha de cabeceira do avô. Quando ele lhe pediu que lhe fosse
buscar os óculos ao quarto para ler as instruções do pacote das sementes de
gengibre e ele se sentiu impelido pela curiosidade.
O que
tinha o avô guardado na gaveta da mesinha de cabeceira, sempre fechada, e que
naquele dia ostentava uma pequenina, curiosa e baça chave esquecida?
26.
Sentiu
um pânico instintivo ante aquele objeto escuro e perfeito nas suas formas. Mais
tarde sentiria o mesmo ante os mistérios femininos da primeira mulher que
abraçou, beijou e deitou consigo na cama.
Para
que lhe ensinasse os segredos do seu próprio corpo.
Os
que ele guardava há muito para quem os merecesse.
E que
no entanto entregou à primeira que lhe sorriu nas semanas quentes que se
seguiram à sua ida para a tropa, depois de todas as torturas sofridas às mãos
de um par de milicianos acabados de formar…
27.
Que
poderes traziam as mulheres ao mundo para que os homens se lhes entregassem sem
defesas nem subterfúgios? Despidos de si e de todas as suas fantasias?
28.
Havia
uma aura de mistério entre os seus olhos de criança e o corpo que via a
desnudar-se para lá dos vidros transparentes da janela.
Entre
os arbustos bastos olhava a casa do outro lado da rua sobranceira à quinta,
quando deu com a mulher que distraidamente se despia, por trás da janela
fechada, liberta de constrangimentos e de barreiras.
Os
seus gestos, fluídos e gentis, desenhavam melodias na luz quente…
Os seios foram descobertos pelo sutiã, depois uma das
pernas dobrou-se gentilmente, deixando adivinhar a meia a resvalar até ao chão.
A seguir a outra. Depois…
*Emílio Miranda
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