quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Emílio Miranda - A crónica de Um suicídio (21 a 28)


A Crónica de Um suicídio
 
21.
 
Em que momento passamos a questionar o mundo e tudo quanto nele acontece? Quanto nos acontece?
É logo quando nascemos, mesmo que não nos lembremos, ou quando sentimos pela primeira vez o gosto do pão quente na boca
O gosto do fermento e da farinha?
O gosto dos gestos de quem o fez?
 
22.
 
Em que momento passamos a existir? E em que momentos passamos a questionar-nos acerca do nosso fim?
Quando passa a haver mais promessas na morte do que na vida?
O que nos faz desejar morrer em detrimento de viver?
Quantas vezes suporta o nosso mundo partir-se para que deixe de ser possível restaurá-lo?
 
23.
 
A verdade é que o medo do caos se lhe entranhou de tal modo nos ossos, que passou a desejar reconstruir toda a ruina, todo o muro caído, toda a casa devoluta, toda a rua esburacada e feia. Como se fazê-lo, ou pelo menos desejá-lo, fosse já um meio caminho para ordenar o desordenado, erguer o tombado, dar cor a todas as ruinas da vida.
As palavras passaram a ser uma forma de imaginar todas as curas, todas as possíveis panaceias…
Poemas são feridas tratadas, dores desconstruídas e sopradas ao vento…
Poemas são lamentos felizes…
São infelicidades alegres…
 
24.
 
Ou serão vaidades?
Ou serão inúteis melopeias?
Que poema nos salva da dor maior. Do amor perdido. Pela vida?
 
25.
 
O que tem na mão é escuro e frio e ameaçador.
Descobriu-o na gaveta da mesinha de cabeceira do avô. Quando ele lhe pediu que lhe fosse buscar os óculos ao quarto para ler as instruções do pacote das sementes de gengibre e ele se sentiu impelido pela curiosidade.
O que tinha o avô guardado na gaveta da mesinha de cabeceira, sempre fechada, e que naquele dia ostentava uma pequenina, curiosa e baça chave esquecida?
 
26.
 
Sentiu um pânico instintivo ante aquele objeto escuro e perfeito nas suas formas. Mais tarde sentiria o mesmo ante os mistérios femininos da primeira mulher que abraçou, beijou e deitou consigo na cama.
Para que lhe ensinasse os segredos do seu próprio corpo.
Os que ele guardava há muito para quem os merecesse.
E que no entanto entregou à primeira que lhe sorriu nas semanas quentes que se seguiram à sua ida para a tropa, depois de todas as torturas sofridas às mãos de um par de milicianos acabados de formar…
 
27.
 
Que poderes traziam as mulheres ao mundo para que os homens se lhes entregassem sem defesas nem subterfúgios? Despidos de si e de todas as suas fantasias?
 
28.
 
Havia uma aura de mistério entre os seus olhos de criança e o corpo que via a desnudar-se para lá dos vidros transparentes da janela.
Entre os arbustos bastos olhava a casa do outro lado da rua sobranceira à quinta, quando deu com a mulher que distraidamente se despia, por trás da janela fechada, liberta de constrangimentos e de barreiras.
Os seus gestos, fluídos e gentis, desenhavam melodias na luz quente…
Os seios foram descobertos pelo sutiã, depois uma das pernas dobrou-se gentilmente, deixando adivinhar a meia a resvalar até ao chão. A seguir a outra. Depois…
 
*Emílio Miranda
 
 

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