quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Emílio Miranda - A crónica de Um suicídio (6 a 12)


A Crónica de Um suicídio

6.

O mar ficou-lhe para sempre na alma, como um caminho cheio de possibilidades. Cantou-o e escreveu acerca dele, tanto como escreveu sobre o amor e o desejo que sentiu por todas as mulheres que não teve, por todas quantas o abandonaram – sobretudo por ti –, pelas que amou em vão e pelas que viu partir por trás dos olhos brilhantes de saudade.
Amou sempre de mais!
Amou sempre mais do que devia.
Tal como o avô dizia que acontecia com aqueles que tinham nascido para serem infelizes…

7.

A infelicidade é o mais estranho paradoxo da vida. Nasce sempre de uma infinita alegria, de uma imensa satisfação que morre abruptamente.

8.

O avô sabia de infelicidades, de felicidades e de desejos, como ninguém. Tal como sabia de coisas que ninguém mais sabia. Nem o pai, nem a mãe, nem todas as pessoas adultas que conhecia.
Talvez por isso o tivesse elegido para sempre o seu herói.
O avô sabia como plantar uma horta, como abrir um carreiro de água para a rega, como concertar uma janela empenada, como pregar um prego na ripa solta de um beiral, como beijar a avó de modo a que ela se risse até às lágrimas e como ser severo como um deus prestes a acabar com o mundo.
E no entanto o mundo parecia nascer das suas mãos, como uma obra sempre renovada.

9.

Como o pão que todos os dias a mãe punha sobre a mesa. Quente, pesado e faminto da sua fome.
Nada o satisfazia tanto como o pão que a mãe cozia. Nem o da avó, que cozinhava tudo como ninguém, mas a cujas mãos o pão tendia a esmorecer, esvaído de fermento como um corpo moribundo, a pontos de afirmar que tal acontecia por ser tão quente o seu sangue.

10.

Por isso quando o avô morreu em novembro, a avó chorou durante dias, com as mãos frias e o coração cheio de saudade… E ele soube que as lágrimas que chorava eram a tristeza de quem tinha perdido o que mais amava no mundo. Ao ponto de se ter inesperadamente esfriado, dentro dela, o sangue que sempre lhe correra tão quente nas veias.
Tão certo quanto a avó não ter durado à morte do avô, mais do que um mero mês de dezembro.
Frio, ventoso e triste.

11.

O seu mundo ruiu então pela primeira vez e demorou tanto tempo a voltar a pô-lo de pé que imaginou que tê-lo conseguido significava, depois daquelas mais do que todas severas perdas, que nenhuma outra o atiraria de novo por terra.
Erro crasso, o seu!
O seu mundo tinha ainda muito para ruir, muitas ruinas em que se transformar.
Disse-o perentoriamente a morte da mãe.
O vazio que sobre a mesa ficou.
O vazio que nenhum outro pão conseguiu desde então preencher.
O pai passou a beber, como se transportasse consigo a sede e a tristeza de todos os homens.
E com a bebida esqueceu-se de quem era, do filho que tinha, das hortas que o avô lhe tinha deixado, da amassadeira da mãe, da arca onde o grão apodreceu.

12.
 
A casa caiu por terra, como uma ruina vazia de gente e de alegrias.

*Emílio Miranda

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