quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

BRANCO

Para quê ser fitado quando despontamos em vida se quando a deixamos já não nos fitam os mesmos olhos. Até os olhos são substituídos. Para quê nos queixarmos dos defeitos que a cara nos deu, olhos maiores, nariz gigante, dentes afastados, testa comprida. Tudo isso igual, isso e o café com o amigo, as compras com a mãe, as pinhas na garagem a desaparecerem cada vez mais rápido. O céu fora da lareira. A vida é o que temos. Ir de férias e esconder o branco de que somos feitos, disfarçá-lo com o que nunca havemos de ser, também eu o faço, que cabeça a minha, não percebo. E depois o silêncio. A hora do médico e ele sério a olhar para uns papéis e nós já meio enterrados no consultório. Sabemo-lo de antemão. Puxam-nos as pernas. Não sei se vale a pena ter manias, um apelido mais chique, um casaco caro, escrever um livro, tudo isso manias. Mentiras de costas voltadas e desfazemo-nos em lágrimas, nem lágrimas partilhamos. Uma vez por mês coelho à caçador e vinho na mesa sei lá, se isso engana o branco, que seja. À noite um passeio, um gelado no Verão e um chocolate quente no Inverno. O acordar mais difícil a cada dia, as mantas cada vez mais frias e a persiana uma merd, deixa entrar a manhã toda. Está estragada. Hei-de levá-la para consertar. Talvez me distraia e fale com o moço dos arranjos. O Sol forte demais e as ruas com tantos buracos. O alcatrão tão queixoso. Aos Domingos da parte da tarde uma bicicleta e a beira-rio. Os homens a saírem do casino, vidros fumados e fatos completos, na mesa do póquer deixaram esquecidos a mulher e os filhos. Quando há aniversários uma mesa cheia e cada vez mais bengalas. Os pratos os talheres tão bem arranjados e no final tantos doces, tanto colesterol. O guardanapo em copa. De que vale isso? Na Segunda-feira a escola. Penso nas cores que condizem mas fico sem conclusão. Ténis vermelhos calças béjes e uma sweat tão velha, o azul já pouco azul. Saio assim, tão desajeitado. A Professora com uma música na voz, gosto de a ouvir, distraio-me do branco. Diz que tem filhos e que todos os dias vai buscar o neto ao colégio. A turma, parva, olha-a no início. No final já nem olhos. O chegar a casa e os os ténis desarrumados no meio da sala. O corpo estendido na cama. Sobram-me inutilidades e a música que não oiço, os outros com que não falo, os livros que não leio e os filmes cada vez mais parvos que não vejo. Tudo isso para enganar o branco em que vivo.
Gonçalo Naves


Foto tirada daqui: http://www.saffiramarmores.com.br/produtos_ecoquartzo.html

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