domingo, 22 de fevereiro de 2015

ALGO ME MULTIPLICA

O problema da angústia destas personagens em colisão umas com as outras e sem entendimento suficiente. Todas elas estruturas concebidas sobre fundações de confiança escassa. Todas elas abanando por tudo o que é lado e por isso cada uma delas ignorante em relação às outras e a tudo. A personagem principal talvez o espaço (o espaço sem dúvida) em que existem porque, se bem virmos, é esse espaço que as regula e lhes dá a vida tão necessária para continuarem em colisão. E esta escrita tão dura porque inventar pessoas, que coisa mais difícil. Mas de criador nada tenho. A maneira como as palavras se constroem e vão dando entrelinhas a pessoas inventadas é-me um mistério. Vou guardando afeição por algumas delas. E depois o tempo a criar-se, dá-me continuidade e coloca-se responsável por tudo o que é detalhe. Uma corrente de ar e não tarda eu doente de cama. Melhor porque assim talvez as personagens doentes e se as personagens doentes talvez incapazes de continuarem em colisão. Agora um cão tão bonito e a queixar-se da velha infância que nunca teve. Também ele um mar em forma de silêncio. Escrevo porque lhe escuto o deserto. Acompanha-me os dedos que correm cada vez mais rápido e vê-me o vómito em forma de desrespeitos à gramática. As personagens e os livros com particularidades. Ganham vida e constroem-se de forma independente de mão alheia. Começam a ter vontade própria e aí já nada a fazer. Na cozinha chora-me a Inês e na sala o João sem ver importância nisso. Têm filhos pais e uma casa que só é possível porque o preto da tinta e o branco da página têm tamanha perfeição no contraste. O autor que nunca o foi perde o poder que nunca teve e passa a ser um espetador (espetador que estranho isto), um leitor no meio de todos os leitores. Eu assim neste momento. Não tenho o mais pequeno mando no que escrevo. Não sou o escritor deste livro. Escreveu-se sozinho.
Gonçalo Naves


Foto tirada daqui: http://mudedeatituteeemagreca.blogspot.pt/2010/02/baixar-livro-gratis.html

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