Meu
querido José
Escrevo-lhe a última carta
deste ano de 2014 que será, para si, a terceira carta, por mim escrita, lida em
2015. Já notou como o tempo é uma ficção genial?
Repare que começa o novo ano
falando e lendo sobre o quê? 2014, o passado próximo e distante. O passado onde
ainda o José só era promessa de um futuro por existir.
Todo o passado é presente e
todos nós nascemos antes de nascer, ainda que não o saibamos, jovem frenético e
Dada.
Pois bem, envio-lhe nesta
missiva mais um poema das minhas primaveras românticas (que parecem ter um
século de idade), seguida por um pequeno ensaio que, aos olhos de hoje, parece
semi-fantástico, também escrito há, sensivelmente, em termos de tempo
psicológico, cem anos! O título destas palavras todas seria algo como "Poeira estética de ateísmo e liberdade"
Assim que estiver por
Coimbra responda-me, oh genial jovem da lira post-moderna!
Bom 2015, ainda em 2014. E
bom 2014, já em 2015. O tempo, meu caro, somos nós que o fazemos.
Muito seu.
Gonçalo V. de S.
Aos católicos de bolso
Quem negará os teus passos,
Leves e feitos de luz,
Quem recusará os abraços,
Dos pobres que crêem em Jesus?
Será a divina chama do teu tormento,
O ópio dos pobres,
O orgulho dos snobs,
O tão esperado momento?
Ancestral, longínquo e distante,
É o teu bater de asas branco,
Oh convertido pelo espanto
De uma pobreza líquida e brilhante!
Que cara é a tua de graçola
Ao passares por um pobre desvalido
Que sofre de estômago ferido
Pela tua ancestral e nobre esmola?
És tu, altivo vagabundo
Quem foges dos grandes deste mundo
Que, com gestos de escarro e de engano,
Fazem do divino um antro profano.
Deixa a tua cruz de ouro,
Belzebu de gravata e capital,
Tens os cornos de um touro
E a ignorância do governo de Portugal!
Redime-te, espartano da grã Cruz,
Aceita o teu estranho hissope,
Não belisques as meninas de saiote
E segue o exemplo do teu Jesus!
Paris, 14 de Julho de 1968
Ainda sobre a Liberdade
Por mais que
pertençamos à dinastia dos deuses, a humanidade terá de ser sempre a nossa finalidade.
O homem supremo é o homem livre. Acima disto, não pode haver nada. Só o amor
livre é capaz de calar tempestades e receios. Só o homem livre pode realizar o
processo revolucionário que libertará a Humanidade do jugo argentário e
arrivista. «Uma só coisa é sagrada: o homem livre. Acima dele nada existe»,
disse Wagner em «A Arte e a Revolução». Só o homem livre poderá ser o
verdadeiro Homem!
A religião não pode servir de empréstimo
a uns quantos meninos de coro e de capela que servem um deus que retine e
brilha ao som das horas das bolsas europeias e americanas!
O Cristianismo tem de se tornar no
Socialismo dos nossos dias, e já Antero o gritou há quase cem anos! Hoje
grito-o eu, rouquejando, mas com o mesmo ímpeto das ondas atlânticas!
Só a Liberdade religiosa, de pensamento,
de sensibilidades, de orientação sexual e política poderá revolucionar a nossa
sociedade e este mundo do pós-guerra hitleriano. Só a Liberdade poderá guiar a
Humanidade, não um líder espiritual e político, que roça sempre nos arames dos
autoritarismos démodés e balofos, saloios e horríveis.
Só a Liberdade será capaz de trazer a
Beleza e a Bondade e a Justiça e o Pão. Só pela Liberdade e em Liberdade vale a
pena viver e lutar. Sem Liberdade, tudo o resto é NADA!
Liberdade. Eis TUDO!
PIM! (para não me esquecer de Almada
Negreiros).
Paris, madrugada de 14 de Julho de 1968.
Sem comentários:
Enviar um comentário