Meu querido José
Envio-lhe um texto antigo, de há mil anos, quando a moda eram certos tipos de bigodes rebeldes e cabeleiras psicadélicas.
Perguntar-me-á se quem escreve sou eu. É claro que não, jovem frenético. A mão é a mesma, mas o escritor é outro. O Gonçalo de então acreditava em ideias esfumaçadas, de neblina metafísica e outras tontices que tal.
Dei, por acaso, com este texto, num dos meus arquivos. Melhor dizendo, foi Efraim que, ontem de tarde, enquanto organizava as pastas se apercebeu de uma folha solta e aparentemente perdida entre a correspondência de Cesariny e uns escritos a propósito dos Floyd! Efraim, risonho, com a folha na mão, luminoso como um Alexandre, diz-me, oh Viana de Sousa, que texto trrrriunfalll! Manda-o para o jovem José, que o vai lerrrrrr como um tesourrrro! Pois bem, aqui vai ele, seguido de uma larrrrrrrgo, liberrrrral e não moscovita garrrrgalhada.
Caso queira engavetar este texto ( o José e a sua mania de engavetar textos e classificar tudo. Já não bastam as gavetas das meias e das gravatas! Deixe o Aristóteles em paz, na sua filosófica e marmórea mudez), atire-o para a secção dos "Escritos Iniciáticos" dos ácidos e toda essa parafernália aos olhos de hoje quase mitológica!
Muito seu.
Gonçalo V. de Sousa.
Consigo ouvir as sinetas e as silhuetas
oitocentistas de milhares de corpos suados e usados, martelando emoções de
natureza humana. O fraque da elegância revira os olhos perante o pó e a
sujidade de um mineiro irlandês exilado em Paris. Os automóveis rugindo, rangendo,
roendo o macadame, malucos! Os leões dançando malabarismos de bola de circo
vitoriano. Os espadachins de sistemas dançando quadrilhas de fumo com sua
excelência, o verme capital.
Caem no fundo sem poço, meu menino. Eles
caem num poço sem fundo, sem problemas. Os ciprestes da cor da morte. Malucos
aqueles que têm medo da vida mundana, movimentada e cosmopolita da solidão.
Bem-aventurados os julgados do coração, sua excelência o verme. Quem sois vós
para virdes falar de joelhos à minha muralha inexpugnável? Touristes de sensações e de prestidigitações de tempos passados!
Ah, as Longínquas Sensações Distorcidas
saltitando opacamente pelas veias e pelas cartilagens que neste momento parecem
ser as minhas. Fosse a vida tão simples como este momento fora e ao lado do
tempo e do ciciar diário.
Somos crianças perdidas no tempo,
acolhidas pelo lado negro da lua. Mas a lua não tem lado negro. Somos húmidos,
profundos e negros. Sorrisos de plástico que escondem abismos inóspitos por
dentro. Betão de esmalte esbranquiçado num grito roxo e amarelo. Somos cores e
luzes. Somos um castanho líquido esmaecido pela chuva aguda de uma tarde surda.
Múltiplas sensações refundidas.
Sensíveis e hipócritas como o solo de
uma guitarra descontrolada, impaciente, nervosa, inconsciente, esguedelhada,
frenética, suada, eufórica cansada exausta sem respirar sem uma única pausa
porque respirar é ceder aos deuses do Olimpo porque respirar é petrificar o
tempo. O Tempo.
Meu tio Francisco tocava instrumentos
cardíacos de forma platónica. Pederasta e pedante, o Xicó chateava de tão
elegante e conhecedor das anfetaminas que, por uma noite, nos tornavam deuses,
teólogos e reis. O efeito verde da tempestade transformava-nos em pequenos
Cristos que percorriam, descalços, as jerusalens da memória, onde nos chicoteávamos
e crucificávamos com a inclemência que nenhuma água poderia jamais lavar.
Fizemos de Pôncio Pilatos um baixista descontrolado e de Barrabás um impetuoso
baterista. Maria Madalena e João, o predilecto, tocavam guitarra e teclas, não
respectivamente, ao som cardíaco das primeiras folhas e das primeiras aragens.
Paisagens crísticas e bíblicas sempre
foram o forte da farmácia de meu tio Xicó.
Mas houve um súbito corte no ritmo da
banda. As teclas recomeçam com um ímpeto que nenhum César ousaria conquistar,
que nenhum Rembrandt teria a audácia de pintar, ainda que por fora, mentindo
por dentro.
Vês o homem voador, menino? Vês como ele
voa, num céu líquido e navegador?
Longínquas Sensações
Distorcidas. Latitudes Superiormente Deformadas.
O que é o paraíso senão o tempo que
deitamos fora em cada escarrar metafísico? Personagens de romances que nunca li
cumprimentam pessoas de carne. Ritmos que nunca ouvi saltitam por entre uns
dedos que parecem os meus. Pulsão sexual reprimida? Desejo nefasto de
imortalidade?
O som existindo como uma maldição esdrúxula.
Sempre gostei do esdrúxulo da palavra esdrúxula. Sentimentos esdrúxulos são
como paixões adúlteras lidas em alcovas de um verde envergonhado, em quartos de
pensões Realistas. O som é uma criança brincando com a ampulheta dos deuses,
jogo do mundo de cócoras, pó aristotélico das montanhas encarnadas. A Luz muda
e surda de água. Luz.
Dou à luz o silêncio e o arco-íris do
fingimento, menino. O céu é um parque de diversões colorido, múltiplo,
fragmentado, espelhado.
O chão esvai-se, não em sangue, mas em
sensações.
A realidade é como um sino dividido por
uma voz genialmente robótica.
O que é a realidade? O que é certo? O
que é errado?
O que é a mentira e a verdade? Loucos e
vagabundos só se diferenciam pelo perfume, não pelos gestos.
Entre o genial e a loucura existe a
distância de um comprimido.
Londres, 15 de Agosto de 1970
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