A Crónica de
Um suicídio
A
vida começa todos os dias. Não interessa o que está feito. Todos os dias a
ciência de viver recomeça. Exigente.
Esquece
o que fizeste. São coisas de nada, que é obrigatório aperfeiçoar. Em novas
coisas de nada. Que nada são quando os dias nascem de novo.(Mesmo que tenhas experimentado o sucesso. Mesmo que tenuemente o tenhas sentido…)
Tudo e nada andam de mãos dadas, como dois gémeos antagónicos. Nada sorri de tudo. Troça do que tudo faz. Tudo é nada e ambos sabem-no.
E um dia tu também o sabes, de uma forma que não te permite a redenção. Nenhum caminho te resta. Nenhuma janela aberta. Nenhum recanto onde esconderes o ridículo em que te tornaste. E então pensas na forma de poderes também tu transformares-te em nada. Um nada consolador, onde tudo se resuma ao silêncio. Ao esquecimento e à paz final.
E primes o gatilho de uma arma esquecida. Ancestral. E nada. Nada acontece.
2.
A luz
intensa atinge-te, como uma bala fulminante. Rasga-te o nervo ótico, aloja-se
num recanto da memória.
Não
te lembras do dia em que nasceste, mas a primeira lembrança é aquela que te
identifica com tudo o que passas a ser. Cheira-te a pão fresco, a fumo e a
frio. Depois vês-te a comer sofregamente o pão que te queima o céu-da-boca.
Sabes que acabou de sair do forno, cozido pela tua mãe, amassado durante longos
minutos e levedado por horas. O pão é um alimento exigente. Por isso o comparas
à vida.Quando foi que surgiu essa analogia? Não sabes, mas é assim que há muito o vês.
3.
A dor
crava-se na tua fronte esquerda. Palpita torturante. Por cima quente. Por baixo
frio. Não sabes onde estás, nem o que és. Ou, porventura, no que te
transformaste. Não sabes mais do que sempre soubeste. Que não sabes quem és.
Laivos
de recordações atingem-te. Como um comboio em que viajas. Ruge na noite e pressentes,
sentes, que lá fora, para lá da janela que silva, chove. Chove torrencialmente.
Uma chuva fria. Álgida!E é então que ela chega. Senta-se a teu lado, na carruagem cheia. E o perfume dela envolve-te como uma nuvem de bem-estar.
Que dura pouco. Tão pouco!
Sobrevém uma dor surda.
4.
A dor
assinala uma ferida no joelho. Caiu quando corria. Estava quase escondido
quando a queda o revelou. E como se não bastasse ainda havia a dor.
Chorou
de vergonha.Não chores – disse-lhe a Maria. É mais nova do que ele um ano e gosta mais do Joaquim do que dele.
Gosta tanto dela que às vezes lhe dói.
O avô riu-se e disse-lhe que eram ciúmes. E que ciúmes era o que se sentia quando se gostava muito de alguém que não nos queria…
Não sabia ainda que toda a sua vida tenderia a repetir-se…
5.
A
primeira vez que viu o mar não imaginava, não podia supor que houvesse uma
distância tão vasta feita de água, de reflexos e de espuma. Feita de cheiros,
de sonhos e de fantasias.
Mas o
avô disse-lhe que tudo quanto pudesse imaginar relativamente à vastidão do mar
era muito menos do que a distância que haveria a percorrer.Caso tivesse a coragem de se aventurar como os antigos marinheiros que haviam ousado ir pelo mundo.
Desconhecido.
Perigoso.
E tão povoado de medos!
*Emílio Miranda
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