quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

AVÓ

Tem sempre a mesma mancha nas calças. Não sabe que a tem porque nunca as despe e nunca se vê ao espelho. Diz que tem a cara num trapo e por isso não quer espelhos. Eu peço-lhe que compre um e ela a dizer que não é preciso, não é preciso não é preciso, dinheiro mal gasto menino. As rugas, transpiradas e profundas, contam histórias. Quando era miúda, dez anos talvez, saía de casa com a madrugada ainda lenta e plantava-se à porta da leitaria. Por ser a primeira conseguia trazer mais um quarto de pão e meio frasco de leite. Livro-vos da guerra mas não vos livro da fome, ela a escutá-lo com a face namorando o rádio, melhor que estes gatunos que só nos roubam menino.
Não lhe treme a caligrafia e nas palavras cruzadas tem excelente entendimento. As outras velhas invejam-na. Não são tão velhas mas têm uma velhice maior. Umas andam de bengala, pobrezinhas, desequilibram-se por tudo. Outras, mais ou menos mortas, passam o dia amarradas ao colchão. De noite não, de noite ganham vida e passeiam-se em grupos. Fazem excursões e deixam lá o tempo. Ela não, seja dia ou seja noite mantém o mesmo passo acelerado em direção a todo o lado. O passo leva-a e não deixa de existir.
Quem sabe ainda venha a morrer. Tenho em memória, tenho em boa memória a primeira vez que a vi. Eu bebé, ela velha, sempre foi, nunca deixou de ser velha. Mudou-me a fralda e quis pôr-me uma de pano. Tentou com afinco, braços fortes dominaram-me a resistência, quieto menino. Dizia que no tempo dela era assim que se fazia, não havia cá fraldas descartáveis e os meus filhos não morreram por causa disso menino. Modernices só fazem é mal e não servem para nada. Lavava-as uma vez por mês ou menos no tanque da roupa, tanque tão sujo. Não achei graça nisso. Fraldas de pano não me compunham a ideia, não sei porquê. Ela ainda as tem guardadas. Tem medo feio de precisar.

Gonçalo Naves
Foto tirada daqui: http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=726645

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