domingo, 21 de dezembro de 2014

O Senhor Costa


O Costa não tuge, nem muge, nem grunhe, nem ronca, nem mia, nem ladra, nem grasna, nem bale, nem crocita, nem relincha, nem coaxa, nem arrulha, nem pia.
Apenas anui, concorda, aceita, cala, consente.
Casado há 25 anos, desistiu de ser ele próprio há 23.
Os dois piores anos da sua vida.
Dois anos demorou a ficar convencido de que ser ele mesmo era coisa com muitos defeitos.
Depois, convencido, cansado, vencido, foi evitando ser até deixar de ser.
Desapareceu como por magia.
Onde é que está o Costa? – Olhos à esquerda, olhos à direita, a tentação dos olhos no tecto, como se o Costa pudesse estar, como cientista colado ao tecto a fazer companhia ao candeeiro, ombros encolhidos, lábios franzidos e ninguém sabia.
Que o mesmo é dizer ninguém o via (queria ver ou procurava, sobretudo rigor).
- Sim, querida!
- Claro, querida!
- É para já, querida!
- Como queiras, querida!
Ouvia-se o Costa ou só o Costa se ouvia, como que a desfolhar um malmequer, coxo, desdentado, defeituoso, e mais não se ouvia.
Assim, dia após dia, demorou dois anos, tantos dias, o Costa desapareceu, sem qualquer magia e exactamente como ela, a querida, explicou desde o princípio, como se não mais tivesse feito, a querida, do que dar estrito cumprimento aos procedimentos de um manual de instruções, o Costa um microondas, exaustor, um forno.
A querida explicou.
Não pode dizer que não explicou.
Explicou: - Tu não tens querer, tu só me queres a mim.
Enquanto ele sem prestar qualquer atenção à explicação, mau aluno, mau resultado, lhe dava mais um beijo.
Houve um tempo em que não via, nem ouvia, apenas queria, a querida, de bem-querer.
25 anos depois.
Não era preciso esperar 25 anos.
Esperou 25 anos.
25 anos depois percebe, conclui, admite, que ela estava carregada de razão, como em anos de fartura as macieiras, os galhos sobre estacas, sujeitos ao insustentável peso dos frutos.
Foi ela quem lhe fez três filhos, os dois rapazes mais velhos e finalmente a desejada menina, respectivamente o nome do avô materno, do avô paterno e Sofia porque o encontrou bonito e para incomodar uma prima que foi mãe em sincronia.
Foi ela quem decidiu tudo o resto, conclui sem vontade de explicar o que é tudo o resto.
O resto é o trabalho, a cidade, o bairro, a casa, as flores do jardim, camomilas cujo cheiro abafado não suporta, o sufoca, e que para mais lhe arreliam a sinusite, o tapete da entrada, um tapete bem-falante que calorosamente diz BEM-VINDO em Times New Roman Bold.
Já deu consigo a falar com o tapete.
Já mandou várias vezes o tapete fazer companhia ao Ramalho, e nos seus pensamentos a palavra RAMALHO também em Times New Roman Bold, o vão consolo de responder na mesma moeda, a tristeza amarga de não conseguir insultar o tapete com todas as letras de uma outra palavra.
Depois, cabisbaixo, vitória do tapete, entra em casa.
Não se sente bem-vindo.
Inventa horas extraordinárias no escritório.
Guarda romances gordos e russos nas gaveta da secretária.
É sempre o último a sair.
É posto fora do local trabalho.
O segurança a cumprir o protocolo, a circular pelas instalações vazias, quase vazias, a avisar que vão apagar a luz.
Começou a fumar.
O segurança fuma.
Fuma dois cigarros por dia com o segurança, para justificar a sua companhia, a sua presença fora de horas.
Fuma um atrás do outro. Sabe como é, a minha mulher não me deixa fumar em casa, diz que o cheiro se entranha nos cortinados.
O segurança não sabe como é, vive sozinho e não tem cortinados.
Não foi fácil conquistar a simpatia do segurança.
Sabe que ainda não conquistou a simpatia da segurança.
Depois, em casa, come o jantar frio, porém em sossego.
Come o jantar na companhia de lebres eternamente em fuga de inevitáveis galgos nos azulejos da cozinha, sente-se uma lebre, uma lebre sem fuga possível, lebre guisada, açorda de lebre, enquanto vai mastigando pensamentos fáceis de prognosticar, se fosse caçador, a tiro de espingarda, tem uma espingarda, o avô paterno deixou-lhe uma Beretta, tem uma espingarda mas não tem coragem, se tivesse, rebentava com os azulejos da cozinha, depois com os da casa de banho, depois com tudo o resto.
O resto são os cortinados, os electrodomésticos, as mobílias, o grau de dureza do colchão onde dorme, as camisas nas gavetas da cómoda, os fatos no guarda-fatos, a pasta dos dentes, o perfume, o champô, o after shave, o cão, o nome do cão e a taxativa impossibilidade de ter um gato, a cor das gravatas, a cor das peúgas, e por que regra divina as peúgas têm de condizer com a gravata, o uso de boxers, que saudades do aconchego de um par de cuecas, a roupa a vestir no dia seguinte, a cada dia seguinte, o pequeno-almoço, já não suporta papas de aveia, o jantar, o canal da TV, o seu lugar no sofá, o lugar do cão, um cão que percebendo que os dois na mesma condição subordinada, só lhe falta falar, como o tapete, passa o tempo a mostrar-lhe os dentes, o cínico!
Afinal acabou por explicar.
Precisava de desabafar, conversar não apenas consigo ou com o segurança ao qual se impinge todos os dias por vinte minutos e nem sequer são adeptos do mesmo clube de futebol, beber com companhia uma cerveja no alpendre, só é pena esta noite fria de chuva picada a vento em vez de uma noite de quente de Verão.
 
Raquel Serejo Martins





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